segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Notes from the couch XVIII

Meu coração se abre para dentro. E fica aberto dentro do peito, sem passar pela barreira da pele, sem subir pela garganta e ganhar as palavras. Sinto uma dificuldade enorme em dizer. Nada me é mais fácil do que escrever. Do que ver surgir aqui, na tela, rapidamente, as palavras que vão se costurando na mente. Mas os dedos são os únicos capazes de transmitir. A língua trava. As bochechas queimam. Não há uma palavra sequer que saia da boca que consiga dar conta de um milésimo do que se passa por dentro.
 
Meu coração de abre para dentro, e deixa o sentimento acumulado no estômago, nos rins, no pulmão. Respiro isto que transbordou. Respiro isto que é de mim, mas que deve ter surgido de algum outro lugar. Às vezes penso que o que está aqui dentro quase não teve interferência do mundo, que cresceu sozinho em uma terra não-semeada. Quase como flor daninha. Mas como pode ter surgido do nada se estou imersa no tudo? E nem sempre é ruim o que nasce.
 
Meu coração se abre para dentro e deixa a boca seca. Acordo no meio da noite para beber uma água que não existe, para curar uma ânsia que não pode ser interrompida, para apagar da mente o excesso de histórias que criei e de sentimentos que ficaram das histórias criadas. A palavra escrita é a ponte entre o sentimento e a definição dele. A palavra falada diminui a proporção que ele assume no interior do corpo. É quase que, como se pronunciada, quebrasse todo o encanto que envolve o coração aberto.
 
Meu coração se abre para dentro. E, aberto, faz eu me fechar.
 
“– Suponho que soe engraçado – continuei – ouvir alguém dizer ‘eu amo, é maravilhoso, é bom, é formidável’, com relação a todas as coisas. Claro, não sinto isso todos os dias – mas gostaria de sentir. (...) O problema é que estamos atemorizados a maior parte do tempo. Digo ‘estamos atemorizados’, mas quero dizer que nós nos atemorizamos.” Miller

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Não julgue as minhas palavras tortas 
Os meus olhares economizados 
A minha fala cortada 

 Estou do avesso. E o que respinga para fora é o que transborda de mim para dentro de mim.

Diálogo - sobre ter um gato

Eu: quero um gato e está decidido!
Você: ração + areia + brinquedos + etc 
Você: amor... 
Eu: AMOR. Exatamente isso!
Você: lembra também do cocô que vai ficar o fim de semana parado na areia .
Eu: companhia, carinho, lambidas...
Você: mas você tem o meu carinho.
Eu: você não me lambe.
Você: pega o gato se quiser. Mas vai ser uma despesa a mais. Um fedor a mais. Sua casa é pequena. Lembra disso.
Eu: é mais cheirosinho que o ralo.
Você: amor...um gato na sua casa... 
Você: aliás, lembrei agora, hehehe, não pode animal. Tá nas regras do condomínio.
Eu: INFERNO.CONDOMÍNIO ESCROTO.
Você: desculpa...
Eu: eu não conto pra ninguém.
Eu: VOU TER UM GATO. ESCONDIDO. QUE AVENTURA!
Você: aham, espera ele miar.
Eu: eu ensino ele que não se mia.
Você: tá. Faz o que quiseres.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

Deixa eu fazer poesia com a vida 
Deixa eu limpar e secar a ferida 
Deixa eu imaginar uma realidade esculpida 

 Por hoje, deixa eu me enganar
 E pensar que nada mais vai sangrar 

 Deixa meu coração desmanchar 
E a calma encontrar nova forma de se calçar 

 Deixa eu bordar um ponto indiscreto
 E depois costurar um sorriso secreto
Ainda me dá esperanças ver que tem gente que tem esperança. Que crava as unhas roídas no nada e cavoca, cavoca, tentando encontrar qualquer resquício do tudo. 



Carta não enviada IX

Hoje eu te esperei em um fundo colorido. Pensei que, se o tom cinza azulado não pudesse abandonar minhas palavras, pelo menos haveria um contorno na superfície que as fariam mais amenas, mais doces. Não sei o que veem de doce em mim. Não sei por que não vejo doçura neles. Os papéis se inverteram e a lógica nunca existiu. 
Costurei barcos de papel na minha cortina branca rasgada. Quando deito na cama, olho o céu e os barcos e imagino a praia vazia, o grande silêncio arrebentado pelas ondas. Estou só. Estou só nessa cidade cheia de gente. E parece que, quanto mais gente passa debaixo da minha janela, debaixo dos meus olhos, mais se acentua a solidão. Pior do que a solidão é a mistura entre ela e a saudade. 
A única coisa que posso fazer o dia todo é te esperar. Faço tantas coisas que nem sei enumerar, mas a única constante é a espera. Está no peito, no nervosismo dos pés, nos olhos que buscam incessantemente por uma paz quase nula nessa cidade de ruídos e estrondos. Está no café que quase queima a língua, o café que eu bebo o tempo todo na esperança de expulsar o sono. Mas de mim só expulso a calma, pois é o nervosismo que acaba por se instalar. 
Enquanto te espero, olho para as esquinas como quem quer ver surgir alguém. E desejo tanto que surja que quase vejo a sua imagem vindo em minha direção, uma utopia que me acalma por um ou dois segundos. 

Vejo poesia em tudo e acho que há muito tempo perdi o foco, mas não sei se alguma vez já fui provida disto. Não sei se algum dia já fui provida de alguma coisa. 

Engulo a saliva do que digo para dentro. Engasgo. Cuspo uma, duas, três palavras. Até a produção do cuspe é demasiado exaustivo. Minhas mandíbulas cerradas, durante a noite, deixam a dor durante o dia – e a necessidade de ficar calada. 
Abro outra cerveja e te espero chegar. Quase penso que os passos no corredor são seus, embora eu saiba que você sempre caminha de forma silenciosa. Você é tão silencioso como o silêncio que eu desejo para mim. E quando fala, sua voz preenche os buracos que se formaram ao longo das esperas, ao longo dos lábios selados e das conversas nunca realizáveis com outras pessoas. Falo tão pouco que, nas raras vezes em que falo mais de cinco minutos sem parar, algo pinica dentro da minha garganta e logo começa a queimar.
Eu não acho que seja justo que alguém diga o que é justo. Tampouco que escrevam isso. Não sei o que é mais arrogante: falar ou escrever. Entretanto, a palavra falada pode ser mal interpretada, enquanto que a palavra escrita... bem, a palavra escrita reproduz exatamente aquilo que se quis falar. Te escrevo, então. Te escrevo para te dizer que te espero. Mesmo quando não te espero, estou te esperando. E nem mesmo quando durmo deixo de te esperar. O meu sono agitado – isto é, quando ele acontece – é a confirmação disto que te afirmo.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Notes from the couch XVII

Às vezes sufoco com o meu desejo repentino de viver. De repente, a letargia levanta da cadeira de rei e vai embora. Deixa meu coração leve, meus olhos entre o choro e o riso, minhas pernas inconformadas demais para ficar na mesma posição durante mais de um minuto. E de repente eu também sou tomada por uma dança que escorre do peito e vai parar na ponta dos pés. Por alguns segundos, planejo para um dia o que demandaria tempo de um ano. Quero pintar e andar de bicicleta e desenhar. Quero pegar a minha gaita de boca e tocar qualquer coisa fora do ritmo, dentro do meu ritmo abstrato e eufórico demais. Quero grudar na testa do mundo a solidão despida. 

Por um tempo – tão escasso que quase não pode ser descrito – sou outra vez.


segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Notes from the couch XVI

Eu ando. Acho que é isso: eu ando. Não sei pra onde, mas continuo caminhando. Às vezes, em um impulso que eu não sei de onde sai, extasiada por uma ânsia que faz meu coração pulsar mais forte e encostar na parte da frente do peito, saio correndo pelas ruas quando já é tarde demais para que qualquer outra pessoa esteja nela.
E ando dormindo tarde também. Sem pensar que no outro dia devo estar de pé antes das 8h. Ando não pensando. Ando para o trabalho e depois ando de bicicleta. E ando esperando as ideias enquanto os textos andam brotando na minha mente, a cada pedalada, a cada chuveirada no final da tarde. O trem me faz andar quando estou parada. A vida me empurra quando tento cessar o passo.
Ando sentindo. Acho que sempre andei sentindo. E que o sentir está sempre em movimento. Sinto enquanto ando. É uma coisa que nunca acaba. Nunca posso dizer assim: hoje eu não senti andando. São duas coisas que estão terminantemente ligadas. Até quando durmo eu ando. E sinto.
Normalmente não sigo uma linha reta. Muitas vezes os meus pés se enroscam e eu tropeço. É porque nunca paro de andar. E andar sem pensar é aceitar sem contestar o que acontece. Aceitar que o que acontece só acontece porque devia ter acontecido. E que não havia outra possibilidade. 
Eu ando sem esperanças. Ando de pés descalços. Ando me arriscando em um canto que não ensaiei. Nunca se ensaia o andar. Um dia você acorda e, pronto, sabe andar. Não é algo que deva ser planejado.

domingo, 22 de setembro de 2013

Notes from the couch XV

Eu te disse que ter gritado com eles não foi uma espécie de reação. O que aconteceu foi que estou sempre distante das pessoas do mundo, mesmo que consiga tragar em excesso as tristezas delas. E que ele ter encostado uma faca em mim foi um insulto do mundo. Com a faca, não foi a minha barriga que ele perfurou, foi a bolha grossa que me protegia, que me mantinha como espectadora, que confirmava o meu estado de terceira pessoa, ainda que com as dores de uma primeira. 
Gritei porque senti raiva, porque senti que o mundo não tinha o direito de dizer que eu pertenço a ele, que vivo nele, que estou nele. Gritei com uma raiva que saiu do peito e transbordou por dentro, até sair na força e nas palavras que não foram filtradas pela minha mente. Gritei e corri atrás deles, não com a esperança de que eles devolvessem a minha paz e a minha condição de terceira pessoa, mas com a ânsia de quem mata, de quem não vê o limite entre o atingível e o inatingível. 
E foi somente quando voltei para casa que compreendi que a desistência havia cravado um espaço fundo em mim, machucando de forma definitiva a minha pele a cada talho, e que a faca na barriga, o grito, a raiva, eram só a construção do ponto final que o texto precisava ter. E entendendo que nada mais havia para ser entendido, para ser creditado, eu te disse que já não acreditava em mais nada, e que sentia vontade de ficar em casa sem nem abrir a janela, protegida da interferência do mundo. Que a casa não pertencia ao mundo externo. Que era o molde onde eu havia me adaptado. Um molde construído e pintado. Um molde costurado especialmente para os meus pés, coisa que foge completamente dos princípios do mundo.

sábado, 21 de setembro de 2013

Notes from the couch XIV

Ainda não dormi, veja bem. 

São quase 4h, mas eu finjo que ainda não passa da 1h. E que amanhã não vou trabalhar às 8h. Não me deito porque a pior sensação é a de deitar com a esperança de fechar os olhos e apagar. Nunca apago. Quase sempre me viro tantas vezes na cama que o lençol escapa, e em segundos estou enrolada no pano azul. Nada é mais detestável do que o lençol embolado. 
A segunda coisa mais detestável são os barulhos da rua. Quando tento dormir, parece que todas as pessoas da cidade resolveram pegar o carro e frear na frente de casa, que todos os bêbados decidiram cantar na rua, que todos os acidentes acabaram por acontecer aqui na esquina. Até o porteiro escolhe ficar do lado de fora do prédio, exatamente embaixo da minha janela, espirrando sem parar. 
Assim, vou arrumando motivos para não pegar no sono. E assim os motivos vão se arrumando sozinhos. Quanto mais tarde fica, maior a desculpa para não dormir. Mais elas se acumulam do lado de fora da casa. E do lado de dentro do quarto. Porque dormir duas horas é sempre pior do que não dormir. 
O pior da insônia é não conseguir fazer outra coisa a não ser pensar em dormir. No fundo, bem no fundo, existe a esperança de pegar no sono. E essa esperança ínfima, mas real, impede que o corpo se levante, leia, beba água, faça os trabalhos pendentes, escute música ou qualquer atividade mais prazerosa do que ficar deitado com os olhos esbugalhados, os pés se mexendo incansavelmente, a coceira pelo corpo, a cabeça pesando no travesseiro que nunca está na posição certa. 
Não há nada de agradável na insônia. As olheiras se acumulam depois de dois ou três dias. Os olhos ardem tanto que é como se recém tivessem saído do mar – depois de um mergulho com as pálpebras abertas. O humor, somado ao café, é catastrófico nas primeiras horas da manhã. 

É a agonia de se afogar sem poder nadar. 

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Presente do indicativo

Tenho insônia 
Trabalho 
Bebo café 
Durmo 
Não sonho 

 Leio
 Não penso 
Não escrevo 
Caminho 
Pego o ônibus
 Pego o trem 

 Fecho os olhos 
Confundo o ruído 
Imagino o mar 
Abro os olhos 

 Bebo café 
Olho
 Não ouço 
Não falo 
Caminho 
Bebo cerveja 

 Desço a escada 
Tropeço 
Pego o trem 
Pego o ônibus 
Corro
 Finjo não ter medo 
Mas tenho insônia

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Reticências

Hoje você me disse: só se afia uma faca com outra faca.

Entre o sentido e o motivo, há uma linha tênue que quase se quebra.

Entre a loucura e a realidade, há a música clássica e uma coleção de palavras não ditas.

Eu te procurei na sinaleira e só encontrei a nostalgia. 

Ela sorriu, baixou os olhos e esperou a cor verde aparecer do outro lado. 


Você me espreme, me espreme, e de mim não sai nada.

Meu bem, estou seca por dentro.

O calor congelou as frases e os sorrisos, e instaurou a desistência.

Meu bem, só vejo o mau nas esquinas. E então me sinto mal.

Toda a minha doçura se quebra ao primeiro som do piano.

É Bach. E o bater das asas dos pássaros que pousam no telhado para ouvir a música.

sábado, 14 de setembro de 2013

Faço poesia com o corte que você deixou na minha barriga
Te acuso no meio da tarde, no meio da rua
Te acuso no meio da minha vulnerabilidade

Todos te olham e ninguém diz nada
É como se não te vissem ali
Como se você fosse minha imaginação

Você me olha e não diz nada
Vejo maldade nos teus olhos escuros
Quero correr para eles e arrancar a tua pele com as unhas
Mas não tenho um milímetro de unhas além da carne

Minhas mãos, despreparadas e trêmulas, arranham o ar
E a falta de ar que enche meus pulmões....
a falta de ar me faz parar de gritar que precisam te pegar

O que fica é a minha loucura
Forte como eu jamais pensei que pudesse ser
E a tristeza jorrando para cima
Até se diluir no calor da tarde 


Às 16h

Hoje o mundo cuspiu em mim. Pega de surpresa, retribuí o gesto. Por alguns minutos, disputamos fisicamente quem cuspia mais alto. Ele desistiu depois de um tempo e começou a se afastar. Do outro lado da rua eu gritei com ar de deboche:

- Não tem valor o que você leva de mim.


sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Querida Natasha,

os meses se vão e não os noto. Sou como algo passageiro que percorre todas as camadas dos dias, que absorve cada segundo, cada pessoa, cada diálogo. Estou cheia de tudo, no sentido bom. Nem sempre é assim. Meu dia dá tantas voltas dentro de mim que pode ser comparado aos acontecimentos de um mês. Tudo em mim é torrencial. 
Tenho observado os pássaros passando pela minha janela. Uma tentativa de olhar para dentro. Vejo suas asas batendo furiosamente e depois se fechando, o que configura um mergulho deles no céu. Antes, nunca havia percebido que eles deixam de bater as asas por alguns segundos. Caem alguns metros. Repetem o movimento. Quando venta muito, é agoniante observar a luta. Penso que em qualquer momento um deles pode ser arremessado para dentro do meu quarto. E o que faria eu com um pássaro frágil dentro do quarto? Provavelmente, apegaria-me muito fácil a ele e o tomaria como um amigo, bloqueando a sua saída para a rua. 
Estou com tanta sede de companhia que faria isto, sim. Estou com sede de companhia. Não de conversas. Estou com sede de olhos ternos, de ruídos, de ver outras vidas neste quarto. Quero dar 'oi' e falar de vez em quando algumas frases desprovidas de qualquer nexo, sem que o outro lado questione a coerência. Quero ouvir vida, e não voz - a não ser que seja a dele. 
Eis a solidão. Um martírio e um alívio. A forca e a salvação. Algo que há um ano eu não consideraria um dualismo. Usaria apenas adjetivos positivos para classificá-la. Entretanto, é a solidão do mundo que me sufoca. Algo que eu não consigo colocar em uma ou duas frases. 
Te escrevi tantas cartas que perdi a conta. Não sei se te enviei alguma. Provavelmente não. Te sinto distante e me sinto distante. Mas é com todas as pessoas. Quero tanto saber saber o que se passa aí, nisso que chamam de coração. Se ele se infla e sorri. Se bate. Se dança. 
Quero tanto escrever. Te escrever. E pintar. E ir ao teatro. Fazer todas as coisas que eu gostava. O tempo me comprime. Me amassa. Mas há no final do dia, pelo menos, o vento - que eu fecho os olhos e finjo ser a brisa do mar. À noite, entre uma e outra cerveja, procuro algo que se descolou de mim. Talvez você encontre aí. 

Com saudade, 
Thaís

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Notes from the couch XIII

Desculpe-me pelas garrafas de cerveja pela casa. Principalmente por estas que estão em cima da mesa e se misturam aos papéis com a minha letra indecifrável. Desculpe-me pela poeira atrás da porta e pela bagunça na cozinha. Quando estou sozinha, finjo que ela não existe. 
Desculpe-me por conversar com o quadro do Bukowski e por conversar sozinha no banho também. Por fazer uma paródia em cima da música A Casa, do Vinicius de Moraes. Desculpe-me pelo silêncio e pelo excesso de vinho. Por dormir tarde. Pela insônia. Pelos motivos nulos. Pelos pesadelos. E por me comprimir nesse mundo, cada vez mais, como se fosse um útero.
Às vezes acho que é isso: que estou em um útero, mas que há muito era a minha hora de nascer. Esqueceram de fazer o parto. Esqueceram que havia gente. Eu grito “hey, estou aqui, olhe para mim”, mas meu grito ecoa no vazio, no vazio que cabe nesse espaço apertado onde me acomodo.
Às vezes faz frio à noite. Faz frio e é escuro. Só três cobertas me protegem do inverno. Três cobertas e essa placenta de madeira que deixa o vento passar pelas frestas. A placenta é velha. Talvez eu esteja no útero de uma pessoa que já morreu. Enterraram, ela e a mim. Não ouviram meu coração. Logo ele, que pulsa com tanta força que quase rasga o peito. Sentiram a minha pele fria. Como, eu não sei. Mas sentiram. E julgaram que eu estava falecida. Estava desfalecida, eu. E fiquei desfalecida aqui dentro, nesse mundo que pinto e contorno, como se fosse uma cabana de papel.
Demoro-me no vinho como quem quer sorver a menor gota, como quem aprecia sem pressa uma vista bonita da sacada. Bebo com calma, como que querendo eternizar o momento da taça nos lábios e do vinho ameno descendo pela garganta quente, quase febril. Demoro-me no vinho como quem demora fazendo amor, querendo congelar o ato, mas também querendo a sensação final: o êxtase; no caso do vinho, a embriaguez. Cuido para não derramar uma gota sequer em cima da mesa. Cuido também para que o líquido não borre o meu batom. Bebo quase que com maestria. Como um conde beberia em sua mesa. Como um rei que não foi coroado.