sábado, 29 de junho de 2013

Eu te esperei. Bebi a última cerveja, passei batom vermelho e deixei o meu olhar doce. Arranquei da pele a tensão e a angústia. Despi-me dos pensamentos moralistas, das frases curtas, de toda e qualquer palavra. Eu sei que você provavelmente riria se me visse de pijama e de batom. Talvez eu sorrisse também. É tanto que cabe neste quarto. Nem sei. Às vezes eu penso que sobra espaço. Que sobra vazio. 

Eu te esperei. Tirei o lixo, varri a casa e arrumei a cama. Preenchi outra parede com recortes de revista. Retoquei o batom. Desdobrei as mangas do pijama por causa da chegada da noite e do frio. Desdobrei as dores e coloquei-as fora junto com o resto da revista. Preciso preencher tudo isto. Com ou sem coisas. Mas não pode ser de sentimento. Sobram sentimentos. Posso classificá-los por ordem alfabética. Mas deve doer mexer neles. Deixo-os quietos e confusos.

Eu te esperei. Como quem espera alguém que não vem, mas ainda assim espera. Como quem espera se enganar com o próprio pessimismo. Como quem espera o interfone tocar. E esses dias até que ele tocou. Mas tinham errado de apartamento. 

 Fecho outro cigarro e espero.

terça-feira, 25 de junho de 2013

Outra vez eu sou a personagem principal. Não há nada mais desgastante do que ser o foco. Do que ter a luz em cima da cabeça, deixando mais claras as olheiras, as unhas roídas, os lábios cortados, os braços machucados, o couro cabeludo em carne viva. E nem danço no centro do palco porque simplesmente cortaram a música. Ora, veja bem, eu poderia dançar no silêncio. Mas não danço. Preciso, no mínimo, estar entorpecida, assim, bem de leve. E terminou o vinho. 
Outra vez eu sou a personagem principal sóbria. Que coisa opaca. Se pelo menos eu pudesse abrir a janela e ver a lua. Dividiria esse papel. Mas é que tenho medo de abrir e descobrir o céu se preparando para a chuva. Não que eu não goste de chuva. Não me interprete mal. É que eu abriria com a expectativa de ver a lua. Não abro porque toda expectativa é uma possibilidade de suicídio. Eu disse isso há um tempo, quando também fui protagonista. 
Herdei todas as frases daquela vez. Herdei todos os trejeitos também. E todas as sinas. Não dormir, por exemplo. Só não dorme quem é protagonista. Porque o nervosismo está até na pele. Coça durante a noite. O corpo vira de um lado para o outro na cama tentando achar uma posição confortável que não existe. Isto é coisa de personagem principal. Que coadjuvante fica preocupado? Preciso descobrir por que é que as pessoas pensam que primeira pessoa do singular é melhor do que terceira. Porque são egoístas? Há de ter uma explicação melhor do que esta. Enfeito as minhas meninas inventadas enquanto a luz do holofote queima em mim. Quem define essa coisa de papéis? Se sou personagem principal, deveria ao menos escolher isso. Por que me impuseram? Que culpa tenho eu?

Ei, olha só. Sei bem que tenho culpa. E que admitir isto não vai fazer diferença. Da mesma forma que negar. Então, por favor, entrega esse roteiro para outro. Já sei de tudo, entendeu? De nada vale viver o que já foi vivido. Só vai aumentar o nível das olheiras, do cansaço físico, da ansiedade. A peça não vai ter graça, compreende? Nem vai servir para drama. Ninguém gosta de drama barato.

“O que neste momento me interessa é fugir à engrenagem, saber se o inevitável pode ter uma saída”. Camus

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Barbas Tortas, 24 de junho de 2013.

Querida Lissa,

Andei hoje pelas ruas. Primeiro de tarde, depois de noite. Andei tanto que nem me lembro se alguma vez cheguei a caminhar desta forma. Andei procurando uma resposta para o seu último e-mail. Mas tudo o que fiz foi perder. Perdi a fome e o frio e a noção de tempo. E o medo. Não tenho medo de andar à noite. A cidade é tão bonita no escuro, no seu silêncio cômodo, nos seus olhos fechados. 
Sempre fui adiando a resposta para o seu último e-mail. Adiei na esperança de que ela aparecesse, sabe? Com uma esperança amena. Algo mais do que eu sempre te disse. Algo mais do que esse pessimismo barato. Do que a metáfora dos barcos e umas frases do Henry Miller. Entretanto, a cada dia que adiei esta resposta, me perdi um pouco mais. E perdi a fala também. As frases. Os diálogos. 
Não sei o que é que precisa ser consertado, Lissa. Porque as coisas já chegaram a um ponto em que é impossível contornar a situação, remendar os dias, costurar as noites. Leio e releio “Além do ponto”, do Caio Fernando Abreu. E queria que essa leitura nos fosse útil, mas não é. É como cavar em um poço que já não tem mais fim. Não tem porque se chegou ao extremo do fundo. Acho que é isso: estamos no fundo do mundo. E ele pesa. Pesa e desdenha as suas dores. Pesa e sangra. Um sangue incolor e denso.
Engraçado que as pessoas gritam lá fora. Vejo a fumaça das bombas e meus olhos lacrimejam. Mas aqui só chega um ruído. Um ruído que se transforma em apatia e toma a casa. Gostaria de sentir o que elas sentem. De marchar sem rumo e cantar qualquer coisa com esperança. Mas sobra “isto”. Nem sei o que é “isto”, mas é ele quem canta em mim. Ele quem dita os pensamentos, os sentimentos e as ações. 
Só posso te pedir para que não tenhas medo de enlouquecer. É pior ficar nesse limite do que aceitar a loucura. Aliás, é a lucidez que embebeda. Que afoga. A loucura acalma o que parecia demasiado agitado, quase sem volta. Não se importe com eles. E isso tudo também não é força de expressão. 

O problema é que nunca conseguimos ser meio termo. Sempre somos pouco ou muito. E conseguimos transbordar até mesmo sendo pouco.

Não sei mais o que te dizer. E não foram apenas as palavras que se esgotaram. 

Com amor e saudade, 
 M. B.

terça-feira, 18 de junho de 2013

O dia do aniversário do meu pai

As latas de lixo reviradas e o fogo estão espalhados pelas ruas. Formam um trajeto feito por milhares de pessoas. Não são apenas as sacolas que queimam. Queimam as palavras entoadas nem sempre no mesmo tom. Queimam no peito os gritos, que substituíram um silêncio prolongado. Queimam os anos. Queimam os lábios selados, os olhos secos, a apatia engasgada. Parece que o mundo saiu da apatia. Esta é a frase que eu mais tenho lido e ouvido. 
Não sei o que é que dizem os olhares espalhados pelas ruas. Ansiosos. Cautelosos. Furiosos. Não sei se dizem algo. Se querem dizer algo. Se todos dizem a mesma coisa. Ou se os ruídos são para ocupar esse espaço eco que o mundo é. Isto que ele se tornou nos últimos dez, vinte, cinquenta anos. E que transformou as pessoas. Talvez sempre tenha sido assim, esse buraco insólito, essa casca desenhada pela rotina e pelos rostos cansados no trem. E pelas unhas sujas e pelos estômagos vazios. E pelas mãos em forma de concha suplicando uns trocados. 
 Não sei se os gritos serão interpretados de outra forma, além de um protesto. “Um”, não. “O”. Espero que sim. Não sei se os motivos explícitos e implícitos, ou a falta de motivos, irá levar a uma revolução maior. Por enquanto, há a sobrevivência. E um desejo de que se viva. Que as pessoas vivam. E isto inclui o governo, o ônibus, o mercado, a educação, a saúde. E isto inclui a falta de filas em todos os lugares, a enganação em todos os lugares. Uma tentativa de tirar a venda. Ou, pelo menos, de cavar um buraco no pano preto e espiar. 
 Há de se ter um começo. Recomeço, não. Não se pode reciclar o que já existe. Seria continuação. Por enquanto, o caos. Ainda o medo. O receio. As ruas com ônibus em cinza. O cheiro de bosta de cavalo por todos os lados. As ambulâncias indo e vindo pela avenida. Helicópteros acordando quem estava prestes a dormir. E entretendo quem ainda espera pelo transporte público na parada. Cem, cento e cinquenta pessoas sem terem como ir para casa. Mas elas sorriem esperando. Esperam com calma. Já esperaram tanto, afinal. 

Que esta não seja uma espera em vão. Que esse apito estridente dos policiais, no início da madrugada, possa, em breve, ser abafado pelo suspiro de alívio.

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Me deixo ficar nua para que você enxergue o que eu não posso ver.
Me conta depois o que é que você viu por baixo da minha nudez.

domingo, 16 de junho de 2013

Notes from the couch XI

Eu te fiz mar, e te fiz rei também. Mas te fiz, principalmente, desconhecido. Nos teus passos calmos, a minha inquietação. No teu sorriso ligeiro, a minha pressa. Entretanto - e há tanto nesse entretanto - cruzei as minhas pernas para que os pés se acalmassem. Para que o coração respirasse. Era tanta ânsia que minhas mãos rabiscavam sem hesitação as linhas apertadas de uma agenda amarela. Lá ficaram as frases incoerentes, manchadas por uma ou duas gotas da cerveja que escorria ao lado de fora do copo quando eu o levava à boca.
Eu me fiz o sal insuportável do mar. Longe do mar. E me fiz também desconhecida para mim mesma. Porque é mais fácil deixar branco quando não se sabe combinar cores. Porque dói menos do que o resultado catastrófico de uma tentativa receosa. E sendo sal, talvez feri teus olhos. Não que algum dia você confirmasse isso com algumas lágrimas. Não isso, não. Não choras. É mar demais. E não sei se esse substantivo, com a vogal a na frente, poderia se transformar em verbo. É substantivo demais para que te tornes um mero verbo.
 
Eu, do sal, fiquei vírgula.
Tu... bem, tu continuas mar.
Sucumbi no meio do centro, sufocada por pessoas que não se viam, que não me viam, que não viam meus olhos implorando por um pouco mais (...). A sobrevivência enche os boeiros, alaga as casas. E meu peito se infla. Talvez se eu pudesse ser menos empática, só talvez... quem sabe? Quem sabe o grito pudesse se transformar em canto.

domingo, 9 de junho de 2013

Ainda sobre a loucura

Você me construiu. Com paciência, costurou dedo a dedo o tecido fino e delicado das minhas mãos. Esculpiu a cintura, definiu a intensidade dos poros, marcou a localização exata das olheiras e também diminuiu o tamanho dos meus olhos, para que eles não destoassem das manchas escuras na pele de baixo. Fez meus olhos cor de mel, porque sabia como gosto do líquido. E deixou que meus lábios fossem secos e doídos, só para eu ter um motivo para usar batom vermelho. 
Você desembaraçou os fios finos do meu cabelo, todas as manhãs, com uma paciência que nem uma mãe teria com a filha. Cuidadosamente, estraçalhou cada lembrança que entupia as veias do coração. E depois preencheu-as com personagens. Você me fez Cecília, Ana, Maria, Amélia e Brenda. E deixou também um espaço em branco para que, em alguns dias, eu pudesse ser o que quisesse. 
Você definiu a proporção exata dos meus seios, e o quanto eles seriam macios para que a coberta não os machucasse e para que não fosse demasiado desconfortável dormir de barriga para baixo. Também foi responsável por medir a quantidade de água salgada que poderia sair dos olhos. E nunca, nunca mesmo, segurou-as por tempo demais dentro de mim. Não queria que eu me afogasse. 
Você desenhou também o meu reflexo no espelho do quarto. E outro mais opaco no do banheiro. Escreveu os pesadelos, mas, uma vez por mês, me contemplou com um sonho longo o bastante para que contasse a história completa. Você me deu o espaço exato que a solidão ocuparia dentro de mim, sabendo o perigo que poderia ser dois centímetros a mais ou a menos. Escolheu as músicas para os domingos à noite. E a roupa que eu vestiria nas manhãs de segunda. 
Você me deu a noção do que era o mar. E, quando eu já o conhecia suficientemente, deu-me ele por completo, vendo o quão largo era o meu abraço para poder afagá-lo. Você cantou por repetidos dias Nina. E João e Maria. E Riders On The Storm. Sentava comigo na cadeira amarela do bar, de segunda a sexta, acompanhando cada gole do líquido dourado e gelado, naquele inverno denso. 
Você acariciou meu rosto quando as noites insones ocuparam semanas. E ficou comigo perto do banco de concreto, assistindo aos aviões pousando no aeroporto. Dividiu comigo as taças de vinho. E as taças de desespero. 
Eu te disse não. Te neguei dia após dia, implorando para que o meu inconsciente te expulsasse de mim. Te culpei pelas agonias acumuladas em pilhas, pela excitação, pela esquizofrenia e pelas esperanças. Eu te julguei corrompedora, desordeira, suja. Eu te quis longe. Te quis tão longe sem saber como seria não te ter por perto. Até que um dia você se foi. 
Nunca vi teus olhos. Nem sei que roupa usava – se é que se vestia. Nunca perguntei se sentia frio, à noite, quando implorava que me deixasse a sós na cama. Você me criou com cuidado. E eu te respondi com egoísmo, cravando as unhas na minha própria carne para ferir a tua ideia de criação. 
Eu cansei de ser Maria, de ser Ana, de ser Joana. Cansei de ser todas as mulheres cujos nomes terminavam com a vogal a. Era tanto elas que não conseguia me enxergar. Nunca percebi que eu era elas. E que esse era o melhor presente que você poderia me dar. 
Você foi embora. Nem sei quando. Perceber eu só percebi quando o peso do meu ser tornou-se inversamente proporcional ao que estava na mente. Então eu escrevi que não poderia mais escrever. Mas já naquele dia eu me sentia abandonada. Foi só nesta semana que percebi: os dois reflexos dos espelhos refletem a mesma imagem de mim. Suporto a minha própria consciência, vendo cada palmo dela, cada letra, cada esconderijo. 
Hoje eu digo que é horrível estar lúcida. Você deixou isto quando foi embora: a consciência absurda de ser. Eles estão errados quando julgam doentes aqueles que estão loucos. Doente é quem está imerso na lucidez. Sinto como se tivessem dichavado os meus pensamentos. 
Afirmo que a minha concepção de loucura era “má”. Não condizia contigo. Agora que você está longe, vejo. Ajoelho-me ao pé da cama e desejo a sua volta, mesmo sabendo que eu não te mereço.

"Sempre é duro revelar para uma marionete as cordas que a sustentam." Gustavo Melo Czekster

sábado, 8 de junho de 2013

Notes from the couch X

Grito para dentro de mim e o grito não ecoa. Isto significa que não há mais vazio. É esta a explicação para o meu cansaço. Estou carregando um corpo pesado demais. Entretanto, não sei de que é formada a massa que me afunda no chão. Se é de gritos ou de fatos, tanto faz. Tento reafirmar que a falta de sentido é o que posso prezar. Entretanto, um olhar rápido na frente do espelho quebra a minha teoria. Algo em mim suplica por um sentido qualquer.
Alongo-me no centro do quarto. Fecho os olhos e tento fazer com que a tensão dos dias saia dos ombos. Elas contribuem para o peso do corpo. Indago o motivo. A resposta parece óbvia nos gritos que se misturam no estômago, e que não podem ser digeridos: lucidez.
A lucidez corrompe mais do que a loucura. Escrevo esta frase e tenho a noção absoluta do que estou escrevendo. Talvez seja isso que tem bloqueado os gritos: a consciência de mim. E é triste escrever estas linhas porque há dois anos busquei expulsar a loucura de casa. A cada tentativa, uma esperança esculpida com caracteres delicados. A cada tentativa, também uma frustração engolida a seco.
Agora que a vejo, finalmente, longe da minha mente, retrocedo. A lucidez me espanta, me intimida. A lucidez me horroriza. Estou nua no mundo. Não posso carregar o meu próprio peso. Não quero responder por mim.

-Tu sabe me dizer se hoje vão abrir a porta?

Notes from the couch IX



Estive no útero do caos. O espaço era tão comprimido que meu peito ficou doendo quando, finalmente, saí dele. Na hora não percebi. Isto é, na hora em que permaneci dentro. Tudo é tão denso e a loucura é tão compenetrada que o consciente se dissolve. A ilegibilidade do mundo é ainda mais frisada dentro do útero. Lá tem cheiro de maconha, de vinho barato, de noite fria. Lá não tem cheiro de vento. Não há como respirar ou falar. Só o caos fala. E fala tanto que nem percebe que grita.
Tem maldade no caos. Tanta maldade que embebeda. E à sombra da luz amarela, escura demais, a maldade parece ainda mais indigesta. Sufoca mais do que o espaço comprimido do útero. Deixa os olhos à mercê da discrepância dos dias. E exclui qualquer espécie de inocência e empatia.
Não senti frio dentro do útero. Nem sono. Nem consegui ficar preocupada com a hora que acordaria no dia seguinte. O caos sugou todos os meus sentidos. Deixou a casaca de mim, uma casca incompatível com a realidade. Fez o seu trabalho em quatro horas e me expeliu.

Saí de dentro do caos, mas uma crosta dele nasce dentro de mim.