domingo, 29 de abril de 2012

Ela chegou bêbada, os olhos lustros não conseguindo focar qualquer coisa. Sentou ao meu lado, no banco desconfortável, cruzou as botas batidas e sem cor. Pensei em dizer ‘querida, você anda bebendo demais’, mas não consegui. Ela sussurrou que havia voltado a fumar, que isso acalmava, pincelava de branco os dias tortos e marrons. E frisou como odeia marrom. A luz do candelabro denunciou seu cabelo claro e oleoso e tentei pensar há quanto tempo não o lavava. Três dias, talvez quatro? Quando falou, em voz baixa, que estava cansada, percebi como havia emagrecido, a pele do pescoço, tão fina e branca, cobrindo os ossos que tentavam saltar. Ela fungava, estava gripada, a voz rouca, e sei que também estava com febre. O cigarro pendia na boca seca, os lábios cortados, duas feridas na parte de baixo, contrastando com os olhos borrados de preto. Havia chorado? Quanto? Por quê? Não pegou na minha mão, como costumava fazer há dois anos. E eu fiquei sem saber se ela ainda tinha alguma noção de tempo, de lucidez, de lugar. Não quis perguntar, fiquei com medo que levantasse e me deixasse só, no meio da praça, da cidade, com a minha vida mesquinha caindo das mãos direto na calça jeans nova.
O pai continuava mandando dinheiro, achava que ela ainda estava estudando moda. E o apartamento cada vez mais sujo, a geladeira completamente vazia, exceto por duas garrafas de vodca e uma de vinho barato. Me disse isso, sem querer, quando eu perguntei como tinha passado as últimas semanas. Não nos víamos mais na faculdade há pelo menos um ano. E, enquanto eu quase ligava, todo dia, implorando presença, ela ia se perdendo cada vez mais dentro de si. Quando puxou a manga da blusa vermelha até o cotovelo, percebi que havia feito mais uma tatuagem. Uma fechadura, ela disse, quando viu meu olhar embaraçado tentando identificar a imagem. E logo completou ‘é tão comum’, antes que eu deixasse escapar qualquer comentário egocêntrico e superior. Não naquela noite, não com aquela vontade de abraçá-la e dizer que parasse com aquilo, que deixasse o apartamento sujo, a geladeira vazia, e se escondesse debaixo das minhas cobertas quentes que há tanto tempo não sentiam a textura da sua pele.
Estava pintando quadros, me disse. Eu pedi para ir até o seu apartamento ver, saber como andava aquele mundo confuso e limitado que não havia mais encontrado espaço para os meus sapatos pretos sem cadarço. E eu sabia que não valia a pena continuar tentando. E lá estava ela afundada na própria eloquência de uma garotinha de 15 anos, mesmo que tivesse 24, e lá estava eu com a minha pseudo-vida de adulto, mesmo que por dentro toda a dor dos 17 se impunha.
Levantou do banco, não se despediu, e tentou caminhar, um pé na frente do outro, em uma linha reta que ia se tranformando em zigue-zague quanto mais se afastava e se perdia na escuridão.

"O que restava agora era uma parte daquele todo e nada mais, alguma coisa que fora deixada à aventura, algo de surpreendente que não se assemelhava a nada." Dostoiévski
Barbas Tortas, 27 de abril de 2012
Querida Lissa,

hoje quis te escrever sobre tempestades. O dia amanheceu cinza, uma garoa caindo nos meus cabelos limpos e mal-penteados. Escutei “A Outra” enquanto caminhava até o trabalho, o guarda-chuva fechado na mão e a água cumprindo o seu papel de me encharcar. O termômetro da esquina marcava 9ºC, 27/04/2012, 8:22. Tentei lembrar da última vez que havia chegado no horário em uma sexta-feira. E não lembrei. Bebi duas xícaras de café. Ele estava doce demais. Limpei a minha mesa, coloquei papéis fora, escaneei dois desenhos que fiz para você e, finalmente, abri esta página para te falar sobre as tais tempestades. E então lembrei do que tu me falaste sobre a inexistência destas, o que logo em seguida fez com eu acrescentasse: se elas existissem, passariam. E não é que passaram por uns dias?
Mas agora sei que esta é a nossa sina, que esse frio não congela o que nos assola, que o calor não derrete as incertezas, que o açúcar que fica no fundo da xícara de chá de morango da tarde não adoça os dias. E não tenho escrito, você sabe. E sei que tu também não andas dispondo as palavras em frases curtas e bem pontuadas, não da mesma forma que fazia uma vez. Mas, em compensação, esta foi a primeira semana do semestre que fiquei longe do bar. É claro que a gripe foi a grande responsável, inclusive anestesiou o sono, a fome, as dores. Veja que esta última sempre está no plural. E é claro que hoje é sexta-feira e o bar não passará impune. Talvez um vinho para aquecer o estômago vazio, a falta de princípios, a sobriedade.
Não vou te falar sobre tempestades, mas queria te contar que as folhas secas não andam caindo. Nada me dá mais prazer do que o barulho que elas fazem quando são esmagadas pelos meus pés. É com delicadeza que faço isso. Mas até agora, nada. Nada de folhas secas. Apenas uma nostalgia que não faz qualquer referência à tempestade. É uma neutralidade que fica engasgada na garganta. E então tenho tossido uma, duas, três vezes por minuto para que ela seja engolida, para que desça com calma, sem machucar, e envolva os sentimentos congelados, todos os começos que eu não ando inventando e terminando com a remessa de fins que parece não se esgotar.
O que você me disse sobre “parece que se escreve o que se tem dentro de si” fez com que eu parasse para pensar. Se não ando escrevendo, estou vazia ou estou tão cheia que nada pode ser transposto para o papel sem que jorre uma confusão de insignificâncias? Entendo o teu cansaço. Se juntássemos ambos, seria demasiado peso para carregarmos juntas ou, compartilhando, arrumaríamos força, sabe-se lá em que lugar, para continuar ‘indo em frente’?

Com carinho,
senhora M. Batata

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Bochechas vermelhas e um pseudo-batom
Unhas roídas e uma música sem tom

Olhos que não vejo e o desespero ausente
Lábios cortados e as mãos dormentes

Um vinho na geladeira e certezas partidas
A cama desarrumada e histórias corrompidas

A boneca de porcelana e o que não foi quebrado
A roupa amassada e pensamentos angustiados

Praias calmas e mares que nunca gritam
Pés agitados e amores que se limitam

Poemas rasgados e excesso de cafeína
Sonhos amarelados e realidade que alucina

Um outono inexistente e um delírio inventado
Livros não escritos e um retrato embaralhado

O vazio mais vazio e a liberdade que transgride
Dois terços de princípio e o repertório que persiste

Nada a ser escrito e pouco a ser criado
Uma desistência sem cor e tudo a ser camuflado

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Esse outro mundo tem tido gosto de cerveja quente, sabe.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Reúno todas as faltas de motivo e faço uma festa sem balões.

terça-feira, 17 de abril de 2012

237 aposiopeses

… e pensou no quanto as meias pretas não faziam sentido, sempre rasgando, e nas reticências que se acumulavam no peito, nos olhos, nas unhas roídas, nas mesmas ruas que passava todas as manhãs, no mesmo horário, exceto quando acordava muito atrasada ou não dormia. E as malditas insônias, dispostas em madrugadas frias ou quentes ou amenas, tanto faz, sempre ali no quarto, na sala, no corredor escuro, na cozinha grande, na fresta da janela que não deixava a lua ser vista, nunca vista, há tanto tempo sumida da escuridão que ela pensa que os aviões são estrelas e caem em sinal de luto pela lua. E todos os infernos se contorcendo na mesma hora dentro de si, como se tivessem algum direito de viver, de reclamar, de impor autoridade. E desaba também nas terças, com gosto de quintas, de sextas, de finais de semana melancólicos de ressaca, de lucidez que não acha a loucura e procura procura encarando a decepção, em frente ao espelho, de enfrentar o rosto pálido e saber que todos aqueles mundos são seus e não saber o que fazer com eles a não ser tentar vomitar. E que tentativa estúpida esta. Como se vomitando a matéria ela não ficasse ali, em frente a xícara suja, em frente ao tênis limpo, impregnando com a falta de odor, com as frases que jorram mesmo que de uma inconsciência composta de fragmentos expulsos da consciência.

"Então está o amanhecer e uma fria solidão na qual cabem a alegria, as recordações, você e talvez tantos outros." Cortázar

Tudo o que eu queria dizer e nunca digo
Tudo o que eu não queria fazer e sempre faço
Formam um poema que eu não escrevo

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Prosa de uma paz incolor

Todos os mares e todas as embarcações e todas as pedras brancas, pretas, achatadas de dor, apenas uma onda quebrando na areia escura, uma canga vermelha suja, dois maços de cigarro vazios encharcados, um pé de chinelo sendo levado lentamente pela água.
Todas as pessoas distantes demais, seus gritos, suas gargalhadas sendo abafadas pelo silêncio da praia, que em hipótese alguma fica sem ruído. Uma pele clara na sombra da árvore que deixa uma luz passar desapercebida, dois becks, duas bocas fechadas, uma sacola de supermercado com dez latas vazias de cerveja. Algas mortas ou vivas protegendo o mar dos pés tamanho 40. Algas mortas ou vivas afastando os pés tamanho 36.
Meio dia ou talvez duas da tarde ou quatro. As nuvens escondem o sol. O vento derruba uma folha pequena em cima do pé direito com as unhas pintadas, mal-feitas. Uma chuva que não cai de um céu limpo, azul, puro. Nesse céu, aviões nunca passam.
Todos os mundos do mundo resolvem ficar estáticos, quase mudos, e deletam as cores. Querem ser preenchidos novamente, mas a lama escorre pelas bordas e ninguém se importa. Nem todos abrem as janelas em busca de um ar um pouco mais fresco. Nem todos querem. E as fotografias vão amarelando em cima da estante.
O mar não reclama. Apenas vai cobrindo mais e mais a areia em uma demonstração de mágoa. Nunca angustiado, pobre coitado. Nunca com outra trilha sonora senão aquela que ele mesmo compõe em dias de tempestade. E quando vejo lá está ela, completamente lúcida, completamente embriagada de álcool e loucura. E os pés sentem a textura das algas e não se importam e a água vai cobrindo o joelho o os lábios sorriem, mostram os dentes amarelos, por causa do cigarro, para toda aquela imensidão de água que termina com uma montanha e, acima dela, uma neblina paciente esperando o outono, que apenas começou, transformar-se em inverno.
Os dois estão calmos, se encaram, se olham com empatia, a única empatia possível para ele. A água não ultrapassa o joelho dela e a areia e as algas vão envolvendo os pés.

quarta-feira, 11 de abril de 2012


Era confortante vê-los ao lado do armário, comportados, calados, sabendo o quão eram elegantes com aquelas gravatas escuras e com as camisas brancas bem passadas. Eles quase não se moviam. Os traços dos rostos menos ainda. Formavam um belo trio, sem dúvida. Polidos, cuidados e vangloriados eles pareciam muito mais do que realmente eram. Não cansavam de ficar, dia e noite, naquelas cadeiras desconfortáveis de madeira. Ao longo de quatro anos permaneceram desta forma, quase convencidos de que eram indispensáveis. Mas, se tinha uma palavra que jamais os definiriam, essa palavra era utilidade.
E os três princípios, tão certos da própria existência, foram assassinados quando, ajoelhada no meio do quarto, a mulher descobriu que o trio era um peso a mais, uma preocupação a mais para os dias, principalmente os de chuva. Deixou de passar as camisas, alimentá-los, sorrir para eles, até que os três, arruinados em si mesmos, desapareceram com a mesma falta de motivo com que foram criados. E ela respirou aliviada, a sensação de vida susbstituindo a de morte enquanto retirava as cadeiras vazias, varria o espaço que elas ocupavam no quarto e observava o vazio que poderia ser preenchido.

"(...) melhor abafar tudo com o zumbido suave e contínuo de um televisor" Thompson
O sono se contorce nas pálpebras. É como se ele dançasse Nouvelle Vague, apenas as pontas dos dedos tocando a pele, amaciando-a, deixando dormente todo o resto, lentamente. Depois de duas horas o corpo pede cafeína. Cinco xícaras bem quentes do líquido escuro passam pela garganta sem que o gosto seja sentido. Não faz diferença se é açúcar em excesso ou a falta dele. Quando o estômago fica aquecido, a mente acorda, mas o corpo continua definhando. É como se jogassem um punhado de sal nos olhos. Eles ardem enquanto o sono continua com os passos improvisados. E nesta dança ele afasta a poesia, a prosa, a contextualização da realidade e as folhas secas de um outono que mal começou.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Jogada na cadeira amarela, perto da avenida, observando a parada vazia ficar cheia de gente. Esperando com a calma de quem já não espera, os olhos secos mas lustros, os lábios rachados, as mãos muito confortáveis para abrir a bolsa e retirar a manteiga de cacau do estojo vermelho. As luzes dos postes parecem monstros e ela brinca, sem saber que está neste jogo, de inventar um mundo ainda mais macabro do que as atuais noites gordas e cheias de alfinetes. É a necessidade de ficar calada, de não ver ninguém, de não ser vista que a faz ficar de costas para o movimento.
Os carros passam a mais de 100 quilômetros por hora e os cabelos, não penteados há dois dias, dançam no ar como se a trilha sonora fosse Beethoven. É Chico que toca no ipod. E a variação das músicas não faz o estômago se contorcer. O líquido gelado e sem espuma desce pela garganta e deixa o interior confuso com a fome. Ela é assassinada tantas e tantas vezes que nem se importa. Apenas renasce, sem brilho, e volta a ser afogada. Com ela vão as frases que se constroem muito antes de serem transpostas para o papel. É por isso que a agenda amarela não é aberta e as mãos permanecem confortáveis em cima da barriga. Uma hora se passa, duas, duas e meia. O movimento dos ônibus aumenta e as mesas ao redor vão ficando cheias de pessoas que falam alto, cruzam as pernas e cospem para o ar da noite a fumaça do cigarro.
A lua está lá, ainda, não podendo ser confundida com uma lâmpada. Ela não sorri. É como se tivesse perdido a graça, tivesse perdido a certeza de ainda poder ter alguma garantia, qualquer que fosse. De repente vira apenas um contorno, um desenho de criança, e não chora por ser classificada assim. Os olhos dela também estão secos e se fecham para a noite. Fica estática, no meio do escuro, achando que não é notada.
Buzinas, sinaleiras que demoram a mudar de cor, mulheres que correm no meio dos carros. Continua sentada. Os pés escorregam com delicadeza da cadeira e se encaixam na sapatilha. As mãos são descruzadas, deixando quente a superfície da barriga, e dividem o trabalho de colocar as duas bolsas pesadas no ombro. As pernas se movem, sem que a ordem do cérebro seja dada, e param no meio fio, caindo na rua. Metade dos pés permanece no chão e a outra metade fica no ar. Eles vacilam. O peso do corpo é impulsionado para frente. Um carro passa tão rápido que a música do ipod é anulada pelo ruído dos pneus. Uma fração de segundo separa a rapidez do carro passando na rua dos pés lentos da menina escorregando para a rua. Ela não nota. Pensa em cacos de vidro, folhas em branco que nunca são preenchidas, amores platônicos destruídos pelo silêncio que os sustenta e o movimento do mar, tão semelhante com o da avenida.