quinta-feira, 29 de março de 2012

"A lua - ela vem espiando por cima da montanha como se estivesse se esgueirando mundo adentro, com grandes olhos tristes" Kerouac

Ela voltou com o frio, depois de três semanas e um dia sem aparecer. Veio sem presença, sem cerveja. Veio torta e alta, como se me dissesse que nunca vai cair, não silenciosamente, não quando nada houver para ser destruído dentro ou fora de um consciente inconstante. De certa forma, ela sempre será ou estará salva enquanto o próprio tombo puder ser considerado um alívio.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Me espera no aeroporto, teus olhos confusos me procurando na multidão, tão ansiosos e perdidos quanto os meus. Me espera como naquela noite em que o avião decolou atrasado, no meio da tempestade, e tivemos exatos 55 minutos para atravessar a cidade e chegar a tempo no concerto. Me espera para falar que é mentira o que ela falou sobre eu ser a tua utopia de amor. Me espera, pois eu já não quero ver teus olhos tristes, como na segunda, e não quero que você busque interpretações para os meus silêncios engolidos com duas xícaras de chá sem açúcar. Me espera e escuta, no meio daqueles ruídos, o barulho dos meus sapatos caminhando naquele chão liso e cinza. Me espera e abre um sorriso, porque ele é o único que ainda pode me aquecer.

M.B.

domingo, 25 de março de 2012

Barbas Tortas, 21 de março de 2012

Querida Lissa,

o barco está furado há tanto tempo que não encontro a resposta quando me pergunto como foi que ele furou. Talvez o papel estivesse se desgatando, lentamente. E fiz assim: joguei todas as esperanças no mar para que ele ficasse mais leve, para que sobrevivêssemos. Também lancei na água limpa os alimentos, as certezas e as garrafas de vinho que eu costumava esvaziar quando a insônia aparecia. E então, volta e meia, eu sentava na beirada do barco, deslizava a mão direita na superfície do mar, sentia o sal queimando a ferida aberta do indicador e pousava o queixo na borda. Às vezes você dormia, Lissa, e não me via calma e pensativa observando as ondas que não existiam.
Uma vez por mês, e sei que era assim pois eu ainda tinha noção de tempo, salvava uma daquelas esperanças. Ali, no meio daquele oceano, elas pareciam ainda mais perdidas do que eu: sempre cansadas de nadar, de manter-se respirando. Não morriam nunca, compreende? E eu, com o coração mole demais, acabava esticando o braço em direção a elas, dizendo mentalmente ‘irei resgatar uma, apenas uma’. Precisava me convencer daquilo. Quando a tal regressava ao nosso forte, o sol voltava a aparecer naquele horizonte, o meu corpo ficava imediatamente tomado por uma energia, que não era consequência de alimento, pois não tínhamos comida, e sentia necessidade de remar e remar. Nessas ocasiões eu dizia para mim ‘é só uma esperança, não se anima, morte de possibilidade é pior do que as outras’. Mas me animando eu te animava e aquilo parecia o melhor a ser feito.
A última delas se foi, hoje. Quando a retirei do mar, há duas semanas, com todo o cuidado possível, sabia que não haveria outra. Por isso é que eu a ajudei a se secar, trocar de roupa e descansar, mesmo tentando mentir para mim que não me importava. Ela se comportou tão bem! Por algumas noites, enquanto velava o teu sono, pensei que ali estaria o que você chamou de cadernos e lençóis novos. E foi em uma manhã de neblina, exatamente como tu definiste a tua esperança, que ela partiu. Tudo o que temos, neste momento, é um barco furado, mas vazio. Podemos deitar no chão, aproveitar o espaço, discutir se a lua cairá ou não, escutar a água batendo na lateral do barco. Há coisa melhor do que sobreviver sem possibilidade de frustração?
Desculpe se não fui clara, Lissa. Mas a morte desta esperança não foi ruim. O gosto amargo na boca, que é passageiro, dará lugar à paz de não mais esperar, de continuar apenas por continuar, de navegar sem motivos. E não vou te dizer que, desta forma, acredito que chegaremos à areia porque estaria fazendo nascer mais uma esperança. Vou falar assim: fecha os olhos e sente o vento bater. Deixa ser.

p.s: Abreu diz que hoje é dia de não tentar compreender absolutamente nada, não lançar âncoras para o futuro.

Com carinho,
senhora M. Batata

quinta-feira, 22 de março de 2012


Sempre esquecia que o ônibus das 19h30min não passava na parada dos trilhos, mas tornava a ir esperá-lo, uma vez por semana, praguejando quinze minutos depois quando percebia que havia perdido. Não naquele final de tarde. Deu de ombros ao vê-lo passar do outro lado da rua, aumentou o volume do ipod e saiu caminhando, os pés quentes sendo apertados pelos sapatos novos que faziam as bolhas surgirem rapidamente. Havia uma espécie de delírio, um sentimento reprimido, tantos pensamentos se misturando que ela dizia mentalmente: não estou pensando, estou imaginando pessoas, imaginando falas, mas imaginando a realidade.
Cogitou passar no mercado e comprar duas latas de cerveja, como ela costumava fazer quando estava com ele. Não, não naquele dia. Preferia imaginar do que lembrar. Imaginar fazia com que os sentimentos fossem neutros. Lembrar significava ficar nostálgica e chata. Os pés pisavam tortos na calçada, reclamando da dor que ela rejeitava. Os pés andavam tortos, lentamente, enquanto seis pássaros passavam acima do sol, que tentava sumir. Os olhos dela não viam. Estava embriagada sem estar bêbada, pensando não estar pensando, sabendo que o sol ampliaria a quantidade de sardas no rosto, mas não se importando.

terça-feira, 20 de março de 2012

Um pesadelo finalizado às três horas e trinta e três minutos.
Dezenove graus do vigésimo dia de um mês com duas estações.
Sete formigas mortas dentro de uma xícara com quatro goles de café.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Ela levantou a cabeça para ver as mulheres que caminhavam em cima de sapatos de salto bem limpos, vestidas com roupas coladas demais, brilhantes e curtas, os olhos carregados de maquilagem escura, quase imperceptíveis. Ela, do alto dos seus quatro anos, vestida com saia rosa de bailarina, meia-calça branca e camiseta de borboleta, colocou atrás da orelha um dos cachos escuros que caiu na bochecha direita, encarou os meus olhos, abriu as mãos em cima das minhas e deixou cair os confetes prateados que havia recolhido do chão. Nada disse. Depois sentou-se no chão, sem se preocupar se a meia-calça ficaria encardida, e ficou observando os homens em seus ternos, com as gravatas opacas, um copo de whisky na mão.
As meninas da mesma idade que ela corriam de um lado para o outro, soltavam gargalhadas estridentes e se empurravam. Volta e meia alguma passava correndo, se abaixava e beijava o rosto moreno dela. A atitude resultava em um sorriso doce. Não sei quanto tempo ela ficou sentada no chão observando as pessoas. Não sei quanto tempo eu fiquei no sofá, com os confetes na mão, observando ela observar as pessoas. Talvez a pequena não conseguisse pensar que mundo era aquele, que agitação era aquela que dominava todos, mesmo que fingissem elegância, levassem o copo de vidro delicadamente até a boca e conversassem baixo, interceptando uma risada suave entre um e outro olhar.
Era como se ela sentisse sem entender, sentisse por não entender. E a medida em que cresce é empurrada para um mundo que nunca foi dela, que nunca devia ser dela. Refugia-se em histórias de leões, fadas, princesas. Refugia-se sem saber que está tentando fugir, sem saber que precisa fugir, que não vai conseguir fugir.

"Quero dormir e sou um horrível sino ressoando." Cortázar

segunda-feira, 12 de março de 2012

Vou pintar as unhas de vermelho, a boca, o cabelo, e colorir a segunda-feira.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Barbas Tortas, 8 de março de 2012

Querida Lissa,

hoje lembrei de quando você disse que eu estava começando a gostar das cores. Não sei se o verbo certo é esse. Os dias têm amanhecido cinza, depois se transformam em azul, verde, laranja e, no final da noite, viram um borrão sem cor e tudo é afogado naquele copo com líquido dourado, que também acaba morrendo dentro de mim e se transformando em uma melancolia impossível de se dissipar. O que eu quero te dizer, e que tem a ver com isso, é que no primeiro dia do ano eu pensei que realmente poderíamos reconstruir o barco, dessa vez mais forte. Que pensamento otimista, o meu. Ou devo dizer esperança? É que barcos de papel nunca deixarão de ser barcos de papel. E você sabe que estaria tudo bem se não fossem as tempestades.
Eu te disse que deveríamos remar juntas, não desistir, mas vejo como eu estava enganada. Meus braços doem, literalmente. Não é algo que fica impregnado nos sonhos acordados de noites insones. Também não sei há quanto tempo eles doem. É por isso que eu tenho pensado em largar os remos na água. Se os largasse, não iria junto para o mar. Estou cansada demais para isso. Quero deitar no chão do barco, fechar os olhos, ouvir a água batendo na parte de fora, de papel, e tentar não enjoar com o balanço abrupto. Juro que pensei em outras possibilidades, mas talvez eu não seja criativa o suficiente. Você sabe que eu tenho tentado. Aliás, nos últimos meses "tentativa" foi o que mais houve, logo para mim que deixava tudo ocorrer sem me importar. Acontece que nem sempre os fatos, os sentimentos e o os mundos, que se instalam no peito, dependem de nós.
Ao mesmo tempo, quando penso em largar os remos, sinto-me egoísta. Não quero te deixar remando sozinha e também não quero que você largue os remos, mesmo que seja para deitar ao meu lado, fechar os olhos e sentir tudo balançando. É por isso que te pergunto o que é que devemos fazer, logo nós que não escolhemos o barco, o mar, as chuvas e as tempestades.

Com carinho,

senhora M. Batata

quinta-feira, 8 de março de 2012

Rejeitar um outro mundo que insiste em viver dentro de ti não vai fazer com ele suma, apenas vai transformá-lo no teu próprio inferno.

sexta-feira, 2 de março de 2012

"O único significado não tem significado." Kerouac

Sinto o cheiro dela em cada rua molhada, em cada casa com o portão trancado, em cada céu de começo de noite, em cada passo, em cada calma, em cada pergunta feita com a voz baixa. Sinto a textura dela nos fios embaraçados do meu cabelo, no vento que pouco sopra durante o dia, no último gole do copo de vidro que é deixado na mesa amarela, no lençol branco que ninguém trocou. Vejo-a através da visão embaçada, quando não estou de óculos, sorrindo de uma maneira irônica, os braços caídos segurando duas malas pesadas. Escuto-a nas canções instrumentais, nos primeiros ruídos de um dia chuvoso, nos versos declamados mentalmente do poema que eu parei de ler na página 89.
Sinto a presença dela em cada espera, em cada noite longe do refúgio, em cada cansaço das manhãs rejeitadas, em cada tentativa de sono nas madrugadas bem-vindas. Ela não fala comigo, não me chama de querida, não diz que eu posso continuar indo, mesmo que não sabendo para que lugar. Ela não olha nos meus olhos, não encosta os dedos longos e gelados no meu ombro e não suja o meu tapete preto com as botas sujas de lama. É tão quieta e se faz de cúmplice. Diz que eu preciso rabiscar as folhas brancas, um desenho, dois, três páginas escritas rapidamente sem que eu tenha tempo para elaborar as frases. Diz que eu posso culpá-la, afinal todos a culpam, mas que ela precisa de mim, que é para eu deixá-la ficar ali mesmo, no canto do quarto, perto do chapéu preto, da coberta colorida, das meias limpas que caíram da pilha de roupas passadas.
Ela tenta me convencer de que mudou, de que não é mais tão má nem tão inconstante. Sinto o desespero dela que é tão semelhante ao meu. Sinto em dobro, tentando manter os joelhos firmes, as mãos quietas, os lábios selados para as frases não saírem. E fraquejo todos os dias, a respiração ofegante por causa do peso dela que se instalou também dentro de mim. E a carrego todos os dias junto com a ideia de fugir um dia a mais, uns minutos a mais. E a carrego todos os dias nas idas e vindas pela estrada perigosa, vendo os conceitos se desmanchando na chuva e escutando ela falar:
-Não sou o oposto de lucidez mas o excesso.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Nuvens escuras engolindo o final de tarde, o sol do dia. Não chove e a senhora louca da casa azul caminha, de um lado do outro do pátio, como se dançasse, o cachorro vira-lata amarrado por uma corrente, deitado em frente a sua casinha de madeira velha. A avenida continua igual, só com um pouco mais de vento do que o normal, os mesmos carros passando, os mesmos ônibus parando, as pessoas entrando, a mesma música no ipod. A história não se repete, ela continua, mas com o mesmo repertório. E tudo, invariavelmente, termina com cerveja no final da noite, uns pingos grossos de chuva caindo no cabelo, uns passos calmos, uma ausência que canta baixo para não doer, a falta de sono que retorna, que fica, que vai, dando lugar a uns sonhos bons que estão na mente errada.
Encara o teto desbotado. Tentou de tudo: Literatura, estágio, emprego normal, trocar de cidade, de cabelo, de roupa. Não há por que continuar tentando. Os fatos são estes: a realidade soluçada entre uma xícara de chá com excesso de açúcar, pés com as solas sujas de tanto andar de um lado para o outro e idas até a varanda que continua encharacada por causa da chuva. Desistira das cores há muito tempo. De tarde come bolo de chocolate, sem cobertura, e bebe uma xícara enorme de café para chamar a insônia. Mas continua sã, lúcida, encarando a garrafa cheia de vinho, no canto do quarto, intacta. Vai é ficar por ali mesmo, uma semana, um mês, uns anos, o céu azul pedindo socorro, chuvas de verão que adentram no outono, afundam o inverno, persistem na primavera e não morrem no verão seguinte.
Café em excesso e
balas de cereja
que nunca mais foram compradas,

as mesmas quartas-feiras no bar,
a chuva que para de cair
e deixa o asfalto molhado,
a sinaleira aberta,
o guarda-chuva quebrado

Insônia em excesso e
pesadelos
que nunca mais foram sonhados.