sexta-feira, 2 de março de 2012

"O único significado não tem significado." Kerouac

Sinto o cheiro dela em cada rua molhada, em cada casa com o portão trancado, em cada céu de começo de noite, em cada passo, em cada calma, em cada pergunta feita com a voz baixa. Sinto a textura dela nos fios embaraçados do meu cabelo, no vento que pouco sopra durante o dia, no último gole do copo de vidro que é deixado na mesa amarela, no lençol branco que ninguém trocou. Vejo-a através da visão embaçada, quando não estou de óculos, sorrindo de uma maneira irônica, os braços caídos segurando duas malas pesadas. Escuto-a nas canções instrumentais, nos primeiros ruídos de um dia chuvoso, nos versos declamados mentalmente do poema que eu parei de ler na página 89.
Sinto a presença dela em cada espera, em cada noite longe do refúgio, em cada cansaço das manhãs rejeitadas, em cada tentativa de sono nas madrugadas bem-vindas. Ela não fala comigo, não me chama de querida, não diz que eu posso continuar indo, mesmo que não sabendo para que lugar. Ela não olha nos meus olhos, não encosta os dedos longos e gelados no meu ombro e não suja o meu tapete preto com as botas sujas de lama. É tão quieta e se faz de cúmplice. Diz que eu preciso rabiscar as folhas brancas, um desenho, dois, três páginas escritas rapidamente sem que eu tenha tempo para elaborar as frases. Diz que eu posso culpá-la, afinal todos a culpam, mas que ela precisa de mim, que é para eu deixá-la ficar ali mesmo, no canto do quarto, perto do chapéu preto, da coberta colorida, das meias limpas que caíram da pilha de roupas passadas.
Ela tenta me convencer de que mudou, de que não é mais tão má nem tão inconstante. Sinto o desespero dela que é tão semelhante ao meu. Sinto em dobro, tentando manter os joelhos firmes, as mãos quietas, os lábios selados para as frases não saírem. E fraquejo todos os dias, a respiração ofegante por causa do peso dela que se instalou também dentro de mim. E a carrego todos os dias junto com a ideia de fugir um dia a mais, uns minutos a mais. E a carrego todos os dias nas idas e vindas pela estrada perigosa, vendo os conceitos se desmanchando na chuva e escutando ela falar:
-Não sou o oposto de lucidez mas o excesso.