terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

O sol nunca mais irá se pôr


Tentativa de uma explicação - por Pedro V.



Foi há pouco tempo que isso aconteceu. Primeiro os carros pararam de buzinar, depois as luzes se apagaram e, por fim, o último ruído que se pode escutar foi uma batida aguda, como se uma última badalada de um sino enferrujado tivesse tocado. Soube que depois disso não conseguiria escrever frases curtas e coerentes. Sei disso. Não que tenham me dito. Eu apenas senti. O que ninguém talvez tenha percebido é que não foi a luz que terminou. Foi a música. Ela morreu. É difícil escrever sobre isso, mas dizem que quem presencia algo consegue escrever melhor sobre o que aconteceu. Nunca acreditei nisso, mas estou tentando.

Ok. Vamos começar de novo.

A música morreu há exatas duas horas, trinta minutos e vinte e dois segundos. Eu não estava tomando banho ou fazendo qualquer coisa clássica - como geralmente acontece nestas horas. Estava aqui mesmo, sentado diante da minha mesa – que é alta demais para se escrever, já aproveito para dizer – olhando para fora. Um pássaro cinza pousou no telhado, no prédio ao lado – que é mais baixo que este – e virou rapidamente a cabeça quando um som semelhante a TUM (nada é mais difícil de reproduzir do que onomatopeias) ecoou pelas ruas. Desde que moro aqui – cinco anos e quatro meses – os carros nunca pararam de passar. Dia e noite. De segunda a sexta e nos finais de semana. Feriado e dia normal. E pararam há pouco, por cinco segundos. 
Tudo isso porque a música morreu. Essa frase, curta e pesada, esclarece todo o resto. Mas parece bruta, não? Áspera. Forte. Ninguém havia pensado que isso pudesse acontecer. Isto é, que ela fosse morrer algum dia. E não foi uma morte lenta – para que nós pudéssemos, aos poucos, aceitar. Sequer foi um ataque. Ela apenas parou. Como se estivesse cansada de existir. Como se nunca tivesse desejado viver. Não avisou ninguém. Não deixou carta de despedida. Nem mesmo um bilhete. Nada. Interrompeu o dia, o tempo e a rotina. O que é mais difícil do que parar estes três elementos – e juntos? Não importa se por cinco segundos ou cinco anos. 
Vi o menino do 506 saindo de fininho pela porta dos fundos do prédio. Tinha uma caixinha de madeira na mão, os olhos estavam vermelhos, as mãos tremendo. Quando ele saiu, acho que sabia. Sabia que ela havia morrido. Não levou seus instrumentos. Nem a flauta. É claro que ele sabia! Porque o toca-discos – que tocava Charlie Parker – também silenciou. Bem naquela hora. Ora, sei que tocava Charlie Parker porque estava na janela escutando. Sempre pegava emprestada a música que ele colocava no toca-discos. Claro que sem ele saber. E dez minutos depois que o menino saiu, a síndica bateu em minha porta pedindo ajuda, gritando que precisava de ajuda, que o 506 estava pegando fogo. Quando desci, apenas as cortinas e a cama queimavam. Tudo por causa de uma vela, em frente à vitrola.
 O menino do 506 sabe que ela morreu. Ficou tão triste que não pode mais ficar lá. Lá onde havia tanta música – espaço agora preenchido pelo silêncio. Acho que ele foi embora porque ficou intoxicado de silêncio. Tem gente que fica. E deixou uma vela em memória à música. Não foi ele que a matou, é claro. Não estou escrevendo isto para dizer que foi um assassinato. Não estou acusando ninguém. Só estou escrevendo porque precisava contar... isso... que a música parou, que tudo parou por cinco segundos, e depois voltou a funcionar. Assim mesmo: como se nada tivesse acontecido. É porque ninguém percebeu. Tantas coisas morrem todo dia – e as pessoas estão tão acostumadas a isso – que ninguém nota.

Meus pêsames. Para mim. Eu que vi tudo aqui do sexto andar. Eu que não vou mais ter Tom Jobim para cantar antes da meia noite, antes da insônia. Eu que não vou ter Parker madrugada adentro. Eu que não poderei tocar desafinadamente – e nem de outra forma – a gaita que herdei do meu avô. Eu que jamais mexerei a minha cabeça no ritmo da música, quando o menino do 506 abrir a janela e ligar a vitrola. Ele foi embora. Não vai abrir a janela. Eu que não escreverei mais histórias sobre bailarinas.

É isso. A música acabou.

Acendo o meu último cigarro.

"cara, cara, esse mundo é mesmo muito engraçado", disse ele. "nós temos de tudo mas não temos nada." Bukowski

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Carta não enviada IV


Já vou preparada. Por que inventar que não vai doer (de novo)? Sempre dói. Alimentar essa esperança inútil não é apenas alimentar uma vírgula, mas destruir um pouco mais disto que insiste em sobreviver. Então eu vou sabendo que o novo é sempre o mesmo novo. Que de tão velho já nem acho classificação. E que de tanto machucar já não vai machucar da mesma forma. Mas vou preparada para que machuque. Afinal, mais vale que eu me surpreenda positivamente do que me decepcione por pensar que seria diferente.
Nem coloco mais um 'entende', depois de uma vírgula, no final de uma frase, seguido de um ponto de interrogação. O que é que pode ser compreensível disso tudo? Até a minha pontuação é incorreta. Sequer coloco ponto final. Porque seria irônico da minha parte colocar um fim onde sei que dificilmente irá ter. Vês que não uso o termo 'jamais'. Mas esta frase longa é eufemismo. Tanto faz.
Poucas coisas ainda importam. E menos ainda delas fazem sentido. Já vou preparada. E talvez isto assinale a diferença. Porque antes eu encarava sempre do mesmo jeito: vai passar. E de novo achava que ia passar. Seis meses depois o mesmo pensamento. Agora sei: não vai. Então coloco os barcos de papel na poça d'água e não torço para que eles saiam ilesos do temporal.

Vai chover. E deixa que chova. Nada posso fazer a não ser me molhar e sorrir com isto.

Notes from the couch IV

O tempo não passa aqui. O relógio, em cima da estante, está parado. E tudo o mais parece estar parado também. As paredes brancas me olham. Encaram-me. Seus grandes olhos neutros quase me hipnotizam. As horas estão congeladas porque me perdi neste quarto. Não há nada a fazer ou dizer. 
O vento entra abruptamente pela janela. Não pede permissão. É agressivo. Sacode as cortinas, espalha pelo chão os papéis que estavam na escrivaninha e, gritando, trava uma batalha com o som que sai da vitrola. Os ritmos se misturam por um momento. Logo, só o sopro contundente do vento pode ser ouvido.
Não é só o vento que irrompe pela janela. A noite entra logo em seguida, ameniza a luminosidade de ausência. E a lua ilumina o parapeito da janela. Há tanto tempo que a lua não é minha. Há tantas estações. Nem sei se me perdoaria. Mas não é hoje que me preocupo com isso.
Deixo tudo entrar porque a minha negação não mudaria qualquer fato. E o quarto, branco e neutro, vai ficando cheio do que não é meu. E eu, que antes via cada coisa em seu lugar, começo a me sentir oca, quase nula - e me sentiria nula se a existência não me obrigasse a admitir que ela protagoniza.
Lembro de todas as definições de vazio que li e ouvi. Percebo que vazio não é ausência de algo, não é falta. Vazio é certeza de que havia algo. E isto é muito pior. Porque sentir um buraco por apenas sentir é suportável. Mas lidar com uma certeza de que aquele lugar era ocupado por determinada coisa... oh, isto sim é terrível. E saber que nada que se faça poderá mudar, que não se pode preencher com qualquer outra coisa, que só aquilo que estava lá pode saturar os vãos...
Nem pego a caneta na vã tentativa de explicar. Explicar o quê? Que o que está dentro não pode sair em forma de palavras? Que o que não está dentro é o que faz desfalecer? Tudo parece mais vivo do que eu. Até a lagartixa escondida atrás do armário. Até a roupa no varal do vizinho que balança sem parar.
Há vida, sobrevivência, existência e obrigação dentro deste quarto. Fecho os olhos e penso em aviões.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Aí vem o desespero e uma porção de coisas que não rimam. Todas sobre o avião ir embora no final da tarde, o pôr do sol embaçar meus olhos, a saudade sufocar, o peito se inflar de tristeza.
Já te disse: a casa vazia é o que mais dói. Dói também esses dias. Esses outros que não são os que eu divido contigo. Que são os que eu não divido com ninguém. Coloco no copo transparente do bar escondido, despejo 300 ml de cerveja - a mais barata - e repito o movimento até que a escuridão da noite e o movimento do trem me deixem à mercê de mim mesma. Ou de qualquer outro eu.
Todo ano eu começo. Começo com uma lista de coisas que nunca faço, com outra lista de livros que não leio. Começo tentando impor um outro recomeço. Esse que repito há dois anos. E que há exatos dois anos se rebela, esbofeteia a realidade e manda uma carta toda a madrugada. Cartas estas que nunca recebo. Mas escrevo. Em dó menor. Em dor maior. E depois toco uma música para você. Ou aperto o botão da vitrola e finjo que o que sai do meu corpo é piano. Depois violino. Depois os dois juntos.
Te vi chorar uma noite dessas enquanto eu dançava aquela música com o meu nome. Acho que foi feita para mim, de certa forma. E você também soube naquela noite. Porque quando abri os olhos, depois do último acorde, vi seus olhos úmidos e sorri com leveza. Com paz. Essa paz que nem sempre vem com a noite. Mas vem com as noites chuvosas de verão. Só que quase já não é mais verão.
Vai e volta. Mas volta antes que eu exceda o limite por dia de café, de pesadelos e de reticências.

Quando o céu pegou fogo

Rolei na cama e te encarei com os meus olhos cheios de culpa. Você devolveu com um olhar de tristeza, suspirou e disse:

- Você é muito complicada.

Deu uma pauta e completou:

-Mas eu te amo mesmo assim.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

No último vagão do trem


O café desce pela garganta e a letargia se contorce no estômago. Não há alternativa. Tampouco salvação. Quanto mais forte, mais intoxicante a sensação de embriaguez por cafeína. Mais acumulativa a irritação nos olhos. Mais ausente as palavras no bloco novo. 
Os pesadelos também voltam. E voltam na medida em que a data do seu voo se aproxima. Até o céu se fecha. Canta uma oração. Canta uma despedida sem notas, assim como a música que toquei para ti com a gaita de boca. Vou chamá-la de ‘quando o silêncio canta o caos’. Ou quando ele não canta. 
Enchemos a geladeira de cerveja, mesmo que não tenhamos dinheiro para isso. Enchemos nosso peito de saudade. E eu respiro o cheiro de chuva porque sei que junto com o novo semestre iniciam as velhas novelas. Sem falas. Apenas os personagens atuando sem roteiro de tanto que já decoraram a ordem das cenas. Outro bar, outra rua, outras quatro paredes. As mesmas pessoas, angústias, esperas. Os mesmos retornos no último vagão do trem.