terça-feira, 15 de março de 2016

Tempo verbal

Juro que sim, que fomos nós naquela Porto Alegre desbotada. Que havia aquele apartamento de um quarto, na esquina da rua que subíamos para ir aos bares e gastar o dinheiro que não tínhamos. E que no meio da noite ouvíamos o morador de rua, que dormia no estacionamento ali em frente, gritar "feito". Nos finais de semana após o pagamento, íamos àquele cinema hipster e vazio que vendia discos de vinil e livros antigos. Dava uma sensação gostosa pedir uma Heineken de R$ 5 e entrar na sala escura, só com uma estrela branca na parede. Dava uma sensação estranha sair do cinema com os olhos marejados, um cheirinho de chuva mesmo nas paredes de concreto, e aquelas ruas vazias que atravessávamos com longos e apressados passos.

Juro que éramos nós naquela época, ainda que não comêssemos berinjela ou queijo branco. Parece que foi há tanto tempo. E não é estranho que tenha sido no ano passado, porque já não somos quem fomos. E é como se um ano tivesse valido por cinco.

(Essa cidade cinza.)

Mas juro que fomos boêmios, uns boêmios que conseguiam engolir cerveja ruim, quase quente, só pra amenizar o verão ou os gritos dos bêbados da rua no meio da madrugada. E eu usava umas sapatilhas de balé duas vezes por semana na esperança de um dia ficar na ponta dos pés. Nunca fiquei. Mas juro que tentei. Em frente ao espelho longo, me curvei dezenas de vezes para alcançar um pé de bailarina que eu não tinha. Mas não fui. Não fui bailarina. Mas fui tanta coisa, tanto pouco de tudo, tanto vazio, tanta saudade. Juro que sim, que fui. E que vez ou outra lembro do amanhecer naquela janela emperrada do quarto. E penso na gente e nas longas conversas sobre medo e sobre o-que-vai-acontecer-com-a-gente. Já aconteceu. Sempre aconteceu. Mas havia uma agonia que nunca morria. Só agora, só agora que morreu.

E se naquela época pudéssemos nos ver hoje, ainda assim eu teria chutado, bêbada, as garrafas vazias de cerveja no meio daquela rua movimentada. Ainda assim nos sentaríamos naquele bar quente, daquela balada quente, e tocaríamos piano e gaita. Ainda assim eu me veria nos olhos daquela única mulher nua. Ainda assim eu gritaria para dentro o meu desejo incessante de ser nada.

Juro que sim. Que fomos. Mas que não somos mais. E voltar praquela Porto Alegre desbotada, um ano depois, me fez perceber que hoje eu já não conseguiria mais encontrar o meu caos na calmaria da cidade, uma vez que encontrei a minha paz no caos desta outra cidade. E que eu precisaria fazer um esforço absurdo para aguentar o peso no peito que mantive em mim por dois anos. E revisitando os bares, a fachada do apartamento minúsculo onde morei, me senti fora do tempo. Me senti fora daquilo que fui. Como se tivesse sido expulsa da bolha do eu do passado. Me senti ainda mais deslocada do que naqueles anos em que fui residente. Quase não reconheci as ruas, os meus bares preferidos, o lugar do balé, o mercado. 

Quase não me reconheci.
Porque já não sou.
Embora haja menos caos, não sei que tipo de paz se firmou em mim.

(Tantas cores nessa cidade cinza.)