segunda-feira, 28 de abril de 2014

Sejamos objetivos

1. Tento ser tudo ao mesmo tempo. Não consigo. Não consigo nem ser nada, que era o que eu tanto queria ser. Pego uma xícara de café e tento não me apavorar com esse estado apático. Abro o caderno e decido enumerar as atividades que preciso fazer. São tantas que não consigo organizar. Desisto de tentar ser tudo. Fecho o caderno e opto pendurar na parede a minha primeira tela. 

2. Estamos quase terminando o segundo EP do Dom Pedro, mas estou longe de terminar a monografia. Meu cérebro adotou uma classificação muito radical: tudo o que é obrigatório, ruim; já as coisas feitas por livre e espontânea vontade,  boas. 

3. Digo pouco, mas é porque tô pensando muito. E pensar mais de uma coisa por segundo torna difícil o processamento das frases. Digo para mim mesma, mas a voz ecoa e morre em seguida. Esse é o único problema de ser para dentro: o tudo se dilui no nada. 

4. Acho que esquecemos de dizer bom dia, mas tomamos café da manhã juntos. É sempre angustiante não saber quando nossos olhares tornarão a se cruzar novamente. 

5. Ainda estou sem música, apesar de ter feito uma dezena delas. Vai ver que é porque apenas uma música não consegue resumir esse caos todo - que orgulhosamente chamo de meu. 

6. Montamos um quebra-cabeça de quinhentas peças, fizemos oito músicas, pintamos duas telas, constatamos que os cupins estão comendo o armário da cozinha e o armário do quarto, descobrimos que o gás terminou, quebramos mais um copo e uma colher amarela, bebemos mais de vinte litros de cerveja, tivemos mais de dez pesadelos. Tudo isso para eu esquecer das mais de 30 páginas que ainda preciso escrever para a monografia. 

7. Pensei que pela primeira vez não chorei em nossa despedida. Aí então duas lágrimas caíram dos meus olhos, anulando a afirmação anterior. 

8. Segunda xícara de café. Meu coração rasga o peito de tanto que bate. Minhas mãos tremem levemente. Dizem que sou calma.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Nota de rodapé

¹Somos extremo. Não quero dizer que somos opostos. Não, longe disso. Quero dizer que, juntos, formamos isto que chamo de extremo. Estamos sempre sendo intensos. Se somos juntos, queremos fazer valer esse estado de união. E vamos até o limite. Nunca somos pouco. Ou calmos. Ou vazios. Estamos sempre preenchendo e preenchendo até que o nosso corpo diz "chega". E explode em azia. Em sono. Em dores. Porque somos extremo, amor. Não sabemos ser menos. Somos sempre mais.

domingo, 6 de abril de 2014

Ela veio
e não gostou da música
e desligou o rádio
e me comprou sabonetes
e roupas
e um urso gigante
e outra vez me senti nova
outra vez me senti com 21 anos
e não a mulher que tem
uma casa pra cuidar
uma faculdade para terminar
e um trabalho para manter

rascunho

Digo para ela "quero tanto ser para fora, quero tanto que, quanto mais desejo isso, mais sou para dentro". 

Marieta me olha e sorri. Quer me dizer, em seu silêncio, que a vida pode ser mais simples e mais tranquila. Por um momento acredito no que Marieta tenta me passar. Coloco Piaf e danço com ela no centro do quarto. Ela é quente e leve. Sou pesada e branca, mas ela parece não se importar. Marieta não se importa com quase nada. Enquanto acho tudo chato, Marieta sorri. Talvez seja porque ela é um urso de pelúcia. Talvez seja porque eu tento fingir que sou um também.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Preciso tanto sentir o cheiro do teu cabelo que quando penso nisso invento este cheiro.
Não consegui fazer de novo. E todo dia não consigo fazer outra vez. Choro como uma criança e depois disfarço uma gargalhada como um adulto. Não sei quem sou no meio disso tudo. Não sou muito eu porque sou muito você. Mas quando não sou você sobra um vazio que me dói. E que não passa com uma xícara de café. Gostaria tanto que passasse, amor. E que esse passar não fosse passageiro. Que ficasse sendo no peito. Todo o tempo.
Quero ser outra vez de mentira. É que ser de mentira é a única forma que tenho de ser de verdade. 

 Quero me destruir outra vez. É que só nos caos vou poder encontrar os vestígios de mim mesma.
Eu nunca te pintaria colorido 
Já existe cor de mais em ti
É por isso que você está sempre (color)indo
Então deixo você ser cinza 
Assim você fica um pouco mais por aqui.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

A parte que me cabe

- Feliz Natal.
- Claro. Me fale de você.
- Passo.
- Muitas histórias?
- Muitas, e ao mesmo tempo tão poucas. (Bukowski)

Um dia eu cheguei em casa da faculdade e ela estava no meu quarto. Tinha olhos muito arregalados e um corpo branco quase pequeno. Parecia morta de tão parada. Talvez tenha se assustado com a minha presença, mas era eu quem devia me assustar. Afinal, era um ser estranho dentro da minha casa. Me perguntei como havia entrado e por que havia entrado. Logo percebi que não encontraria essas respostas, então ignorei todos os pressupostos e a aceitei. Finalmente a aceitei. Uma companheira para os dias ociosos. 
Pensei que ela devia ter um nome, já que seria a minha parceira de quarto. Escolhi Josefina porque foi o primeiro nome que me veio à mente. Me fazia lembrar de rugas e da cor rosa. E também me fazia lembrar de um passado que eu nunca tive. Por alguns dias eu cheguei do trabalho e nós conversamos. Quer dizer, eu falava. Ela nunca emitiu som algum. Era calada na sua solidão, uma solidão que compartilhava comigo da mesma forma que eu compartilhava com ela. Eu contava o meu dia de trabalho e ela assistia meu ritual antes de ir para a aula. 
Nos dávamos bem, eu e Josefina. Ela escolhia lugares peculiares para descansar, como perto da cortina ou no canto do quarto. Nunca a questionei. Sempre a deixei bem livre. Só pedi, desde o primeiro dia, que ficasse longe das pinturas de Monet, embora tenha notado que ela preferia as paredes brancas. Fomos amigas, eu acho. E dividindo o apartamento com ela pude tirar o peso que assombrava a minha consciência: o de ter empapado de veneno uma das suas, antes de tê-la jogado pela janela. Bem, naquele tempo eu não sabia lidar com desconhecidos (não que agora eu saiba). Mas foi uma situação muito delicada.
Viver com Josefina foi a chance de me redimir por ter tentado matar a sua irmã. E eu realmente acreditava que havia sido perdoada. Até que um dia cheguei em casa exausta da aula, procurei-a por todos os lados e não a vi. Primeiro pensei que ela tinha me abandonado, mas depois me dei conta que não havia visto em um lugar: nas pinturas do Monet. E lá estava Josefina, calada, o corpo branco marcando território. Enchi-me de pesar. E depois de dor. Porque ela ter cruzado o limite que eu havia imposto significava o fim da nossa convivência. Abri a porta e pedi que se retirasse. Não a chamei de Josefina. Chamei-a de lagartixa, o que ela voltou a ser quando cruzou a porta do meu quarto e voltou para a rua. Agora, sempre que vejo uma lagartixa pelos corredores do prédio, penso em Josefina. E em como fomos felizes dividindo os nossos silêncios.