segunda-feira, 27 de agosto de 2012


"Eu também ficaria impaciente se outra pessoa me falasse dessa maneira, mas há dias em que. Sim, dias. E noites." Cortázar


Tira o pó dos livros, pega a prancheta de pintura e colore, mesmo que de preto, os desenhos que você não fez. Cria uma nova seleção de músicas, de tempo, de dias. Desfaz essa gaveta desarrumada, menina, e começa a dobrar as camisetas do pijama novamente. Descola esses recortes de revista que você fixou na parede e tira as manchas de barro no sapato vermelho. Limpa a chuva da janela embaçada e desembaça as frases. Parafraseia os pesadelos que não gritam mais, apenas dão play quando os olhos se fecham e não pausam quando eles tornam a se abrir. Para de justificar tudo com a loucura. Ela não te espera mais no portão nem deita ao seu lado na cama.
Coloca essas botas de chuva e finge que a neblina que cai no teu casaco preto não está tentando te congelar por dentro. Vai, coloca esse cachecol, aumenta o volume de Nina e esquece esse passado que você criou. Deixa o frio adormecer o rosto. Deixa a chuva anestesiar a angústia. Abre esses olhos para o dia cinza e procura as cores escondidas nas esquinas. Elas estão lá, menina, mas você precisa querer ver. Não fraqueja agora, no último degrau para sair da ponte, no limite para abandonar o caos. Não olha para trás. A sinaleira está fechada e aqueles olhos te veem do outro lado, mesmo que imaginados.

domingo, 26 de agosto de 2012

A água salgada borra os navios pintados nos olhos
O batom vermelho pinta os cortes borrados nos lábios
Os cortes sem cor afundam os navios salgados dos sonhos

Bartas Tortas, 26 de agosto de 2012

Querida Lissa,
eu te disse que viriam outras tempestades, que se aquela não voltasse, ah, sim, viriam outras. É claro que naquela noite em que te escrevi não havia cogitado a possibilidade de que a mesma tempestade voltasse a ocupar o lugar e que, além dela, surgisse uma nova, ainda pior do que esta que se repete há um ano e meio.
Essa nova tempestade veio com uma frase que nunca me soou tão distante. Apenas uma frase, Lissa. Faz uma semana que ela me disse que ele está com tumor, mas foi só na sexta que confirmaram que era maligno, logo depois que acordei atrasada e pouco antes de perder o ônibus. Não pensei que pudesse ser pior do que havia sido até então. Oh, é claro que não pensei, tão afogada que estava nas minhas próprias chuvas, tão cansada que estava de remar que disse ‘tudo bem’ quando você contou-me, em sua última carta, que havia deixado eles de lado também.
Foi mais do que um tapa de agosto, porque foi aí que senti o mês, compreende? Até então o que eu tive dele? Dias de sol, calor e a variação entre anestesia e apatia, com paradas no bar para não soar tão catastrófico. E depois que essa outra chegou percebi que não haveria remendos, que os cacos ficariam para sempre no chão do barco, que eu nada faria para restaurar os fatos e os dias.
Passei a sexta como se tudo dentro de mim tivesse quebrado com o som daquela voz, que não chegou até mim com olhos lacrimejantes e um corpo, mas por meio de uma ligação a cobrar, sem muito tempo para falar, sem muito tempo para me ouvir gritar ao telefone que eu sabia desde domingo, que ninguém tinha feito nada. E ontem choveu. Entende que não havia chovido ainda neste mês? Que agosto estava me testando? E que agora ele debocha de mim? Entende que eu nada posso fazer, porque esta tempestade chega até mim de um modo indireto, de forma que eu não posso detestá-la, fugir, porque de nada vai adiantar.
É nele, Lissa, é nele que vai doer mais do que em mim. Só que ainda não sabe, coitado. Ninguém teve coragem de dizer. E me pergunto se alguém terá, pois ultimamente ele tem sorrido mais do que nos outros dias. E hoje mesmo cheguei lá, depois de colocar minhas galochas e pegar um guarda-chuva para enfrentar o mau tempo, e o vi com o novo gato no colo, o sorriso amarelo, uma espécie de paz nos seus olhos. E nos meus a vontade de sair chorando de lá, de dizer que não é justo, que podia ser em mim, que podia doer mil vezes mais, mas que não nele, entende?
Mas não posso fazer nada, exceto te dizer que demorarei a voltar a remar, que todas as possibilidades se mantêm afastadas, nas poças d’água, afogadas, ou quase. E que eu tento olhar para ele, oitenta e três anos sentados naquele sofá, a cachorra e o gato ao lado, porque todos querem ficar perto dele.

Aguento estas duas tempestades. Você ficaria orgulhosa de mim se pudesse ver como tenho aguentado, sabe, como tenho agido lucidamente, apesar de ouvir minha mãe dizer que estou enlouquecendo.

Com amor e saudade,
senhora M. Batata

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Coloco as minhas sapatilhas de bailarina para ver se elas amenizam o dia. Quero pisar nele. Mas tocar o chão é como tocar uma cobertura feita de caco de vidro. Minhas sapatilhas só deixam meus pés mais vulneráveis.
Ontem mesmo eu pensei que agosto estava no fim e achei estranho que nada de diferente tinha acontecido, exceto o calor absurdo nesta época do ano. Sei que não é drama ou exagero. Apesar de imersa dentro de mim e das minhas criações, consigo reconhecer quando algo se choca no meu peito, sem que eu force. Acho que foi isso: quebraram a porta hoje de manhã. A chutes, gritos e socos. Só que tudo isso doeu em mim quando a água do chuveiro, com cheiro excessivo de cloro, caiu no meu rosto e no meu corpo cansado.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Querida Natasha,

acho que nos desconstruímos em várias faces, sabe? Talvez eu conheça apenas uma de você, uma que nem você acredita possuir. Afinal, todos somos frios em alguma situação. Todos temos autocontrole, mesmo que ele nunca seja usado. E você deixa escapar, ainda que não consiga ver. Ou eu vejo errado - o que é mais provável. É que construímos uma imagem de nós mesmos e acreditamos cegamente nela. Não podemos admitir haver outra possibilidade. Essa coisa de criar antes de viver acontece comigo também. Só que passou dos limites, sabe. Estou em um ponto em que crio os personagens e quero vivê-los, mesmo sabendo o final das histórias. Isso é quase suicídio.
Se o vizinho de mesa de bar deixa o cigarro cair, imagino a história dele e quero incorporá-la. Muitas vezes os elementos passam de um simples cigarro e já são trechos (verdadeiros) das próprias tramas. O erro é por no papel, dar mais cor do que realmente tem, realçar um sentimento, uma fala. É isso que chamo de loucura. Porque a gente não nota, tudo isso é muito inconsciente. Mas somos culpados.
Minhas costas doem, agora. Estou tonta porque bebi café demais e provavelmente meu peito vai doer também se eu finalizar o dia com cerveja, o que é bem provável. A verdade é que estou tentando me manter afastada destas histórias, como dá para perceber no blog. A ausência de terceira pessoa é constante, o que, devo mencionar, me deixa triste. É sempre mais fácil colocar os fatos em alguma outra personagem.
As quintas sempre são cansativas. Também porque é quase final da semana, mas principalmente porque é o dia mais corrido no trabalho - mesmo que hoje tenha sido mais calmo. É sempre difícil levantar da cama de manhã cedo, o que me fez ficar meia hora a mais nela hoje, acordar com uma música horrível na cabeça, não tomar café da manhã e correr para pegar o ônibus na esquina de casa. Ontem terminei de ler Os Cães Ladram, do Capote. Foi um parto acabar, acredite. Hoje decidi ler quadrinhos. Preciso de uma leveza nos dias que não ando encontrando em qualquer lugar. E os livros me dão essa possibilidade.
A primeira coisa que faço ao chegar no trabalho é encher a minha xícara de café. Ela é grande, azul, e tem uma vaca estampada - adoro vacas. Depois abro os meus e-mails e todas aquelas coisas que as pessoas costumam fazer antes de "começar o dia". O meu problema com a manhã e com a tarde é o excesso de sono. Estou sempre adormecendo. Estou sempre me arrastando para onde quer que eu caminhe. E quando o café me acorda, fico tonta. Fico tão tonta que erro as palavras, quando digito, e, ao revisar, não noto. Talvez aqui tenha vários erros. Não vou perceber. O problema é que meu trabalho é escrever.
O almoço me parece a cena mais decadente do dia. Espero na fila, em um restaurante, para me servir. Depois espero até que tenha alguma mesma disponível e me sento para comer cenoura, brócolis, arroz, peixe, morangos e abacaxi. Sempre perco o apetite ao me sentar. Primeiro porque a televisão fica ligada e o volume é alto demais, segundo porque aqueles murmúrios de todas aquelas pessoas me deixam irritada. Então volto para o trabalho, escovo os dentes e logo me sirvo de outra xícara de café para que o sono (duplicado depois do almoço) se dissipe. É inútil.
Por isso que acabei bebendo demais. E agora estou zonza. O problema de estar assim é que faço as coisas sem pensar, vai tudo no impulso, sabe? Como quando você espera uma ligação e ela não chega. Aí você resolve se adiantar, certo?
Agora vou ver a tarde morrer, da janela do ônibus, enquanto vou para mais uma aula. Espero sair viva da noite. E sair viva nem sempre está ligado a tentar me manter longe do bar. Talvez eu simplesmente fuja da aula e me esconda em algum lugar onde possa escrever, imaginar histórias que não são minhas, imaginar o seu dia, a sua história, e depois transformar tudo em realidade.

Aposto que o seu dia foi mais interessante que o meu. Sabe quando todos parecem ser?

P.s: acho que o seu significado de 'detalhe' não é o mesmo que o meu. Espero que você me desculpe.

Com carinho,
Thaís



(ela)
Não escovou os dentes para deixar o gosto de cerveja na boca, aquele bafo que não suportava em ninguém, aquela sede que impedia qualquer outro pensamento. Concentrava tudo apenas nos lábios secos, no estômago sentindo o excesso de álcool, reivindicando paz com ruídos estridentes, e na dor de cabeça que não se extinguia. Distraia-se de si mesma para não cair em seu próprio jogo, acreditar nas suas próprias mentiras, não sabendo se o cenário era puramente ficção ou se fazia parte disso que encravara em sua pele: a realidade bruta. Agitada, ela perdia os fatos que esquecia de viver. Agitada, ela já não sabia se ele existia, de fato, ou se era um ser criado pela sua mente.

(ele)
Preparou um café forte e deixou a xícara em cima da escrivaninha, enquanto a tela do computador ficava branca e o cursor de texto piscava. Aquilo era silêncio, não vazio. Não havia nada de novo para ser escrito, nada que já não tivesse colocado em frases. Não saíam, as palavras. Não saíam e os olhos não se fechavam com força na esperança de que surgisse alguma luz na escuridão. Não saíam e ele permanecia em frente ao computador, o café já totalmente frio e o braço direito dormente, não sabendo e não querendo saber o que aconteceria em seguida, se aconteceria algo em seguida. Mas nunca criava ela.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Querida Natasha,

não havia pensado no "destino das cartas". Mas sinto nostalgia ao lembrar do trabalho que dá escrever uma carta, dobrar cuidadosamente para as pontas permanecerem unidas de forma igualitária e ir até o correio. Eu costumava escrever muitas, acho que há dois anos. Tantas que o homem do correio me conhecia. Mandava vários sentimentos bonitos em envelopes coloridos, várias vezes por mês. De repente parei. Acho que é a falta de tempo, vivo me repetindo isso. Para justificar, sabe? Mês passado decidi voltar a escrever, mas desisti depois de calcular que perderia meu final de semana inteiro com isso. Volto e meia recebo alguma pelo correio, mas sempre demoro a responder. Acho detestável essa minha mania.
Nem sempre Chico Buarque me faz companhia, às vezes detesto ouvir a sua voz. Mas te entendo. E sabe o que é mais curioso? Sempre pensei que você não quisesse ter um relacionamento estável. Acho que construí uma imagem de ti fria demais. Atribuí a você um autocontrole, uma dose de raiva a rotina. Talvez eu esteja enganada. Só que nunca pensei que você não soubesse lidar com a paz. Quer dizer, no fundo sempre penso 'como alguém pode não querer a paz?', mas quem sabe nem eu mesma a queira, de fato.
Parece que todas as pessoas me dizem que não devo deixar as palavras enterradas. Sei que elas têm razão. Sei que você tem razão. Acho que desenvolvi um sentimento de medo, sabe? Medo de que interpretem meus sentimentos, de que interpretem a minha vida, de que usem as minhas frases para algo fútil, mesmo escrevendo na terceira pessoa do singular, mesmo atribuindo a minha vida a outras pessoas. Eu não sei. Já pensei tanto nisso. E me enrolo ainda mais toda a vez que continuo pensando.
Não acho que você seja mais ou menos escritora por deixar de escrever estórias. A maioria dos meus autores preferidos sempre estiveram presos demais dentro deles. E os considero os melhores. Talvez seja porque estou muito ancorada no real. Consigo 'sentir' apenas se 'existir'. Uma grande bobagem, eu sei. Não que tudo o que eu escreva seja real, longe disso, mas vários elementos são tirados de um lugar que eu sequer sei, porque nunca paro muito para pensar quando me sento para preencher o papel.

O que você quer dizer sobre criar antes de viver é que você imagina a história que quer viver ou que história daria, é isso? Tente me explicar melhor, por favor.

Com carinho,
Thaís



Retiro Cortázar da estante, deixo-o em cima das pernas nuas, olho o corte de quase dez centímetros perto do tornozelo e penso ‘quando’?. A noite de cinco horas se estende à minha frente. Parece que vivo só de madrugada, quando o silêncio canta, quando a escuridão apaga as histórias reais e desenha pesadelos. Quero reler todos os contos de Cortázar, quero matar a minha noite de sono assim: como se não houvesse um amanhã, como se não precisasse lutar para abrir os olhos às 7 da manhã, como se. No fundo, acho que todo dia tem sido assim, matando as noites, os dias, a realidade. Sou uma assassina quase perfeita. Acontece que eu só seria perfeita se tudo isso não fizesse parte de mim. Aprendi com Cortázar essa coisa de inventar um fim trágico para os personagens, mas não aprendi como me salvar.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Querida Natasha,

Chico toca há tanto tempo no quarto que às vezes converso com ele, o que me dá o direito de xingá-lo por algumas músicas terríveis. Parece cada vez mais apertado, o quarto. Parece cada vez mais escasso, o ar. Parece cada vez mais presente, a loucura. Faz exatamente uma semana que guardei o meu quinto e maior livro, na caixa marrom, que fica no local mais alto da prateleira, bem acima da cama. Enterro as palavras lá. Já não há mais espaço para qualquer outro maço de papéis. Chamo-os assim, pois 'manuscrito' só seria o nome adequado se um dia eu os fizesse sair dali, o que não é o caso. São eles que deixam o quarto pequeno.
Pergunto-me o que farei com os próximos. E se eles virão na mesma quantidade que estes. Apesar de enterrados e empoeirados, ainda inflamam o peito, os olhos, as mãos. Soam tão inocentes, ali, parados, bem acima dos sonhos, em um lugar onde, intocados, parecem parte de uma realidade que não é minha, que não quero. Mas há tanto de mim neles. E tão pouco deles em mim - o mim de agora, o mim caos. Não tive qualquer escolha na hora em que houve a sintetização dos fatos. Pareço não ter qualquer poder quando o assunto sou eu. Acho que, sem querer, transformei-me em uma destas personagens que invento e finjo não estar relacionada.
E talvez seja por isso que tremi quando você mencionou a palavra 'fatos'. Não porque tenho medo da exposição - como já tive-, mas porque me habituei a esconder as coisas de mim mesma, a transformar o caos diário em uma subjetividade que quase soa impossível. Acho que, inconscientemente, invento mentiras e tento acreditar nelas. São as palavras que me escondem, que me esmagam, que tiram o meu sono, que pesam na caixa marrom.
Quando deito para dormir, já quase na metade da madrugada, o sono se dissipa, a insônia ocupa a outra metade da cama, e sinto falta de ar. São tantos fatos guardados, promessas e sentimentos, mesmo que em frases com a pontuação incorreta, mesmo que em palavras escritas em vários tons de rosa e azul - hoje eu odeio rosa. Volta e meia me pergunto o porquê de colocar tudo em páginas brancas. Não folheio os 'maços' antigos. Se fiz isso duas vezes foi muito. Parece que não quero ter contato com todas aquelas outras pessoas que um dia fui, parece que não quero resgatar o que agora está quieto. Parece que não quero deixar esse quebra-cabeça pronto, juntar os cacos, colocar as cenas, restituir a história. Uma história que talvez não seja minha.
E tudo isto é tão incoerente. Porque não vejo outra alternativa a não ser escrever, compreende? Mas sei que tudo será repousado em algum outro lugar, senão a caixa marrom, que está cheia, em alguma outra. O que mais tenho no quarto são caixas vazias. E devo te dizer que também tenho cadernos guardados e agendas. Estes em uma (grande) gaveta. Pergunto-me se mais alguém, além de mim, guarda essas coisas, nesta mesma quantidade. Talvez você. Talvez várias pessoas que passam por aqui - e eu nem sei quem são. E a pergunta seguinte é se isso tudo pesa nos outros também. De alguma forma, todos parecem conhecer a calma melhor do que eu.
Bem, como você pode perceber, a minha maior dificuldade é falar sobre fatos. Mas eu prometo que irei melhorar.

Com carinho,
Thaís

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Vomita logo essas lágrimas, cospe, grita. Só não deixa elas saírem pelos olhos e borrar os navios que eu pintei neles. Faz qualquer coisa. Expulsa de ti. Expulsa pelo nariz, pelos ouvidos, pelas mãos. E não recupera depois. E também não deixa que ninguém veja, pois esse pranto é bonito demais.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

O cansaço aniquila
A tristeza afoga
E a apatia sorri

Não há rima
Não há coerência
Não há reticências

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

"Por trás da palavra há o caos. Cada palavra é uma listra, um traço, mas não há e nunca haverá traços suficientes para fazer a trama." Miller

Foi só escrever que estava muito quente, que a chuva não aparecia e que as botas de chuva estavam intocadas há mais de um mês. Foi só escrever sobre a ausência do frio para que tudo ruísse de madrugada, enquanto o corpo se agitava na cama e os olhos encaravam a escuridão. Qualquer coisa como "insônia", mas não ousaria mencionar esta palavra novamente, mesmo que fosse em pensamento, mesmo que sentisse a repetição de fase com um teor de apatia muito mais alto do que antigamente. Não ousaria se ver no espelho e perceber as enormes olheiras. Não ousaria sentir o ardor nos olhos, ao abri-los e fechá-los, e cogitar que isto era resultado de uma noite não dormida.
O café queimava na garganta e depois no estômago. Duas, três xícaras na mesma manhã. Como se isso pudesse fazê-la acordar de dentro de si mesma, como se isso pudesse fazer com que cuspisse toda a madrugada assassinada. Mas continuava ali, dentro dela, o movimento lento dos ponteiros do relógio, ainda que parados. Mas continuava ali, a chuva que começara a cair, ainda que durante o dia o sol tivesse aparecido. Mas continuava ali, os pés gelados e dormentes pela falta de meias, de calor, de consciência. Mas tudo continuava ali, para que lembrasse que as próximas madrugadas também seriam amordaçadas e passariam pelos mesmos punhais, ainda que tentasse fingir que nada havia acontecido.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

"Com a madrugada úmida veio o dobrar dos sinos e ao longo das fibras dos meus nervos os sinos tocaram incessantemente e seus badalos bateram em meu coração e retiniram com maldade de ferro." Miller

Ontem à tarde decidi dar corda no relógio que fica em cima na cômoda. Então tirei o pó dele, ajustei as horas e pensei que poderia fazer um teste para ele servir de despertador, já que o meu atual não anda colaborando e eu tenho chegado atrasada no trabalho. De tarde não consegui ficar no quarto. O tic tac era absurdamente alto e me impedia de ler Miller com concentração, inclusive em voz alta. Por isso coloquei-o na estante da sala e, antes de dormir, devolvi-o ao quarto, só que mais distante da cama para que o barulho não soasse tão ensurdecedor.
Deitei-me mais cedo do que de costume, a realidade alertando para uma segunda ainda mais fria e nublada, porque à noite tudo voltaria ao normal. E vai voltar. Pensei que se agosto não estava com cara de agosto, era uma questão de cenário. Só que de nada adiantou apagar a luz e tentar dormir. O tic tac parecia aumentar de volume a cada segundo, às vezes parecia compor uma música, outras queria interromper o meu sono que ainda não havia começado e inserir um pesadelo. Ou dois. Ou três. Ou quantos a minha mente pudesse suportar, já que o principal objetivo era estar sempre no limite.
Mas dormi, talvez por causa da canção. Dormi e acordei dez vezes durante a noite, o que foi pior do que se eu tivesse tido sonhos ruins. Só que não acordei com o despertador tocando, o único motivo pelo qual deixei o relógio dourado fazer tic tac de madrugada. Ele parou 15 minutos antes de despertar. Se parecesse agosto, eu teria ficado irritada, pulado o café da manhã e esquecido o livro em cima da escrivaninha, para não perder o ônibus.
Talvez a realidade esteja tentando me enganar, fazendo com este mês pareça qualquer outro, apesar de estar mandando os sinais corretos de que tudo voltará como era antes, principalmente a loucura - que eu dei como assassinada há mais de 30 dias. E a prova disso é que o sol amanheceu junto com o dia. O óbvio seria que a chuva nascesse. Só assim o cenário seria realmente real. O óbvio também seria que eu escrevesse isso tudo na terceira pessoa do singular. Mas acho que junto com a loucura eu assassinei essa possibilidade de escrita. Ou me assassinei.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Selei mais uma expectativa e mandei para um endereço que não conheço. Logo eu... logo eu que repudio as possibilidades. Chamo-as de um jeito bem carinhoso: suicídio psicológico. Acontece que uma parte de mim insiste em ser masoquista.
Barbas Tortas, 31 de julho de 2012

Querida Lissa,
parou de chover lá fora. As ruas não têm aquele cheiro específico de molhado, por causa do frio, mas não sinto as mãos geladas. Estou quase bêbada. E digo “quase” porque raramente admito que estou. Eu sei, deveria ter me concentrado no projeto. Mas ainda estou com o Word aberto, selecionando os textos, os textos que fazem parte de um passado que me recuso a lembrar. Fico sentimentalista quando bebo. E todos os textos parecem delatar a minha alma, mesmo que muitas histórias minhas sejam atribuídas a personagens criadas.
Faz tanto tempo que não te escrevo. Sinto vergonha. Queria poder te dar alguma desculpa melhor do que “os dias estão corridos” ou “o trabalho tem tomado todo o meu tempo”, mas a verdade é que me recusei a escrever durante semanas – até meses. Tenho noção do tempo porque foi em maio que as coisas começaram a mudar para mim. Escrevi diversos começos para diversas cartas. Não te enviei nada.
Parece que só agora consigo enxergar as coisas. Parece que só agora consigo pensar sem deixar que meus olhos lacrimejem. Preciso falar sobre a tempestade. Você sabe que ela é a nossa sina. E então começo assim: nunca sofri tanto como no último ano. Talvez essa frase seja redundante para ti, logo tu que acompanhaste meus e-mails desesperados, minha agonia que nunca se desfazia, meus delírios que não passavam. Eu pensava que, uma hora ou outra, eles haviam de passar. Esperei. Sentei e esperei. E enquanto esperava fui tomada pela chuva, pelo céu gritando, pelo clarão, pelo barco de papel sendo levado pela tempestade, nossos braços cada vez mais cansados de lutar com os remos.
Oh, como custou este período! Tantas noites de sono em frente a este maldito computador. Tantas cartas que eu nunca enviei. Tantos pesadelos que não sumiam da minha mente. Tantas esperas intermináveis. Tantas dúvidas, medos, neuroses, prantos em vão. E você que ouviu tantas vezes, talvez não compreendendo a minha realidade. Eu sequer tinha noção dela. E até hoje deduzo não ter ideia do que se passava, realmente.
Foi em alguma noite de maio que tudo mudou, enquanto o elevador descia do terceiro andar para o primeiro. Por duas semanas – talvez três- esqueci tudo que me afligia, optei por barrar certas atitudes, não agir por impulso, tentar resgatar a razão em meio aos destroços. Funcionou, sabe. Funcionou para no final de maio tudo voltar, não com a mesma força, mas pior. Em junho experimentei uma coisa quase absurda: o vazio. Não era a felicidade do começo de maio nem a agonia do final dele. Era apenas o vácuo, o mês que separava julho do caos de maio. E julho sempre foi tão doce! No vazio, consegui colocar tudo no lugar, pensar, olhar para a minha própria vida sem que o sentimentalismo me prendesse.
A conclusão a que cheguei não era difícil de se ter chegado. Mas veja bem, na situação em que me encontrava, tudo era impossível. Descobri, por fim, que o problema não era específico, compreende? Descobri que faz parte do meu ser desenvolver um drama e, quando ele não existe, eu o crio, inconscientemente. Este drama passou. Se voltará, não sei. Mas sei que virão outros, em forma de tempestade. Virão. Sei que sim. Mas não largarei os remos. A batalha tem sido muito mais interna do que com o mau tempo.

Engulo os últimos minutos de julho. Agosto é sempre o pior mês do ano.É bom poder escrever para você.

Com carinho,
senhora M. Batata