sábado, 13 de dezembro de 2014

Notes from the couch XXXVI

Me tira de mim porque a consciência de saber que (...) me aterroriza. Porque preciso estar em constante movimento. Porque preciso me perder. Porque não preciso de um porquê. Me tira de mim porque preciso voltar a ser para fora. Porque o meu estoque interno já transbordou. Porque já não tenho como acumular no peito, nem na mente, nem nos olhos. Porque preciso ser também para os outros. Porque ser apenas para mim faz com que eu esqueça quem realmente sou. Ou apaga a possibilidade de ser alguma coisa. Me tira de mim e me guarda em um lugar ensolarado, de preferência com música clássica. Onde não faça muito calor nem muito frio. Onde tenha cerveja e eu possa falar sem me preocupar com a recepção dessas palavras. Me tira de mim e me resguarda. E quando eu já tiver sido o bastante, quando tiver me esvaziado de mim mesma, me coloca de volta e deixe que eu me restaure e me preencha por dentro de novo.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Ensaio sobre três pontos ou ponto final


O caos estava lá quando eu abri os olhos pela primeira vez, uma mancha opaca e vermelha, no meio de uma tarde quente de sábado. Permaneceu sendo um borrão na minha primeira década de vida, até me convencer de que na verdade não nasceu junto comigo. Ele havia sido o útero. Ele havia me gerado. Mas, ao me expelir para fora, ficou grudado em mim, como uma casca protetora, mas sem a proteção. 

Sempre existiu o caos, uma ferida aberta, prestes a cicatrizar, no meio do peito. Mas no começo ele era difuso, estava anestesiado pelas tardes sonolentas e quentes daquela cidade pequena. Mesmo na calmaria não houve oportunidade de o caos ser liquidado. Estava nos olhos e nos ouvidos, naquele rosto pálido dos 14 anos. Nunca foi apenas no peito. Estava na casa reformada e nas paredes brancas, rabiscadas de giz. Estava na espera, na possibilidade, na expectativa de que algo acontecesse. E o “não acontecer” foi alimentando ainda mais o caos. 

Havia insônia também, uma insônia líquida que alongava as minhas manhãs. E nos olhos foi se concretizando certa letargia, que ficava mais e mais vívida na medida em que o álcool descia pela garganta e se acomodava no estômago vazio. E da constante espera, do cansaço, nasceu o fluxo de estar indo a qualquer lugar, de não importar o destino, nem o caminho, nem a chegada. E da espera nasceu o esgotamento de não mais prever os instantes futuros, que logo sucumbiriam e rapidamente passariam para o passado. E da espera nasceu a condição de que toda expectativa resulta em frustração. 

Apesar de tudo, mesmo nesse início de fluxo, mesmo nessa desistência da credulidade, eu estava no centro de mim mesma. Não sabia muito bem como seriam os dias, e não me importava com isso, mas ainda sabia qual era a minha condição e como eu me encaixava no mundo. Havia a bagunça natural da vida, mas meu caos era organizado porque eu acreditava na ferida aberta, no meio do peito. Porque era ela que me fazia sentir miseravelmente viva. Mesmo quando era forçada a escolher entre a e b, achava que o fluxo me guiava, que eu não tinha poder algum de escolha. Que não havia “e se”. 

Fazer a mala e sair de casa, ainda muito nova, não alterou em nada a minha condição nem me fez voltar a ter expectativas. Era aquilo porque tinha de ser. Porque meu peito ainda estava aberto. É verdade que constituído em uma ferida, mas ainda assim aberto. E mergulhar em ruas até então desconhecidas não mudou o brilho opaco dos olhos, fundidos por aquela letargia. Embora não quisesse admitir, sabia que fluxo era eufemismo para caos. Mas eu ainda estava no centro de mim mesma e me sentia no centro de mim mesma. 

Então aconteceu que o caos foi crescendo até fazer algo de mim explodir. E o que explodiu, em uma tarde de outubro do ano passado, deslocou-me da posição fixa em que me encontrava. Houve a necessidade, quase que desesperada, de construir uma paz que anestesiasse o caos, quiçá o aniquilasse. Mesmo sabendo que ele era a casca, com a raiz funda em meu ser, procurei traçar e moldar esta paz, sem saber que estava me conduzindo cada vez mais para longe do centro. Das tentativas, a única que chegou perto do alívio foi fechar os olhos e ouvir o mar, os pés enterrados na areia, o frio cortando as bochechas rosadas. 

Só que se o mar pode trazer alívio, instintivamente também propícia o caos em seu mais alto grau. A linha é quase invisível – e indissolúvel. E se perder, quando já se rumava automaticamente para longe, é ainda mais fácil. Uma vez por mês há a ânsia de machucar o peito dos pés com os grãos ásperos da beira da praia. Uma vez por mês há a necessidade de fugir para encontrar uma paz que nunca vem inteira. Uma vez por mês também há o colapso da mente aceitando a derrota que ela mesma projetou quando tentou minimizar o estrago. E ainda que todos os meses os olhos se fechassem diante da água furiosa, as narinas não aspirariam um alívio compensador. 

O mar instiga o desejo sempre repentino – e sempre duradouro – de se correr para o horizonte, a linha azul que parece separar a água do céu, mas que é só continuidade. Caos é continuidade. Ao invés de me dar, a tentativa de agarrar e embalar uma paz tornou-se o meu ponto de vazio, um ponto que não pode ser preenchido, uma vez que já não estou no centro de mim mesma. Convenci-me de que não conseguiria essa paz, não inteiramente a ponto de substituir o caos. Não como antônimo de caos. Pela primeira vez desde que abri os olhos e vi a mancha vermelha, não sei seguir o fluxo. Porque ele se estancou. Porque rompeu com o passado e tenta mergulhar em um futuro, mas esse futuro parece duro demais para absorver esse pulo, para aceitar o caos que me guiava até agora. 

Estagnada, não olho para frente nem para trás. Não espero, não anseio, não corro para o mar. É um momento breve de falta de caos. Um momento que, de tão fino e limitado, já escorre pelos dedos. Abro a caixa de e-mail pensando se em algum momento a ruptura entre presente e passado virá em negrito, em caixa alta, anunciando a continuidade, ou delimitando um novo começo de um novo caos. Um novo caos que eu poderei incorporar e pintar e me abrigar. Uma nova casca de uma nova quase vida.