quinta-feira, 29 de maio de 2014

Às vezes nunca, outras vezes sempre


Você abre a porta. E você diz ‘bem, faz frio por aqui’. Ofereço vinho e me desculpo pela cama desarrumada. Também não tenho taças limpas. Bebemos no gargalo. Há anos que não bebo vinho no gargalo. Ouvimos Beethoven e eu digo que gosto das variações da música. Lamento não saber tocar nada. Lamento insistir na escrita. Nem ao menos tenho fita na máquina de escrever. E o computador está morrendo, assim como a minha vontade de ordenar a incoerência. 
Grito sorrindo o caos que ocupa meu pulmão. Surpreso, você coloca dois dedos nos meus lábios. Não gosta de gritos. Acontece que às vezes eu preciso gritar. De três em três meses, te digo. Antes era mais frequente. Aí é você quem sorri. Diz que tudo bem, que logo gritarei de seis em seis meses, depois de doze em doze, até nunca mais precisar gritar. Em silêncio, concordo. Termina a música. Logo, termina o vinho. Sinto uma vontade terrível de pintar, de sair, de dançar, de fazer qualquer coisa. Meu peito se enche de vontade outra vez. E o seu, ao sentir o meu, se aquece também. 
Você aceita meus caos e estuda o meu caos e pensa que lendo poderá me sentir um pouco mais. Não sei se vai funcionar ou se é enganação achar que o caos poderá ser entendido. Assim como se pensa que o vazio será preenchido e o silêncio substituído. Você levanta e coloca Arvo Part. Gosto dele, apesar de não gostar muito das vozes. Mas aceito qualquer coisa que seja seguida pela paz. E há paz. E não há medo entre quatro paredes. Desejo ficar para sempre sem me mexer, sem pensar, sem falar, apenas sentindo as vibrações do órgão e sentindo todo o resto que não cabe nas palavras. Nem mesmo cabe na música.  
Não falamos de passados nem de futuros nem de começos nem de recomeços e finais. Não falamos. Apenas olhamos para o teto. O sol entra pela janela e projeta uns raios diformes. Parece que essa fração de segundo dura horas. Então adormeço e você pensa que droga, ela sempre dorme quando está confortável demais. O sono todo é preenchido por sonhos igualmente preenchidos de pesadelos. São os lugares estranhos, uns espaços grandes, umas cores que não combinam e umas pessoas que não existem. Ainda assim estão lá, naquele ponto da mente que nunca para, naquela linha tênue entre o caos e a realidade. Mas nunca há nada de real, exceto os sentimentos. 
Quando acordo já não sei se você estava ali, se eu estou ali, se tudo aconteceu ou se nada aconteceu ou quando aconteceu. Não sei nem que dia é nem que mês. Também não sei se acordei ou se estou presa no tempo do sonho. Às vezes penso que estou presa no tempo do sonho e não quero ser enganada pela minha própria mente. E não há nada que eu possa fazer em relação a isso, a não ser abrir a porta para você outra vez e abrir também outra garrafa de vinho.

"Eu dava o sinal de perigo, mas não podia evitar a catástrofe. Eu respirava perigo e catástrofe. Às vezes a sensação era tão forte que minhas narinas pareciam lançar fogo. Eu ansiava por livrar-me daquilo tudo, mas era irresistivelmente atraído." Henry Miller

sábado, 24 de maio de 2014

Carta não enviada XI

Eu acho que sim, que fico pensando. Que você nunca mais vai voltar. Que é uma pena. Bem, não exatamente uma pena. Mas uma pena que vem seguida pela paz. Lamento e festejo. É contraditório, claro que é. Mas eu própria sou contraditória. Minha natureza é assim. Dizem que isso se chama masoquismo. Não acredito que eu goste de sofrer. Acredito que preciso dos dois lados da mesma moeda. 
Talvez você não volte. E é bem provável. Aos poucos, sua ausência alterará a realidade do passado. Aos poucos, acreditarei que você nunca existiu. E, acreditando que você nunca existiu, você passa a não existir mais. Nem no passado. Nem em qualquer tempo de minha vida. Minha única vida. Minha vida sobrevivida. Minha vida que estraçalho e depois pinto com cores vibrantes.
Não faz diferença. A verdade é que já não me importo (e que inclusive já disse uma porção de vezes, anteriormente). Agora consigo me sustentar em mim mesma. Sei que estou aqui. Sinto minha pele, meus dedos doloridos por causa das unhas roídas. Sinto que minhas bochechas estão quentes (e vermelhas, apesar de não as ver), por causa do vinho. Sinto meus olhos secos, minha boca seca. E meu coração continua úmido, o que comprova que a minha essência não se altera com a sua partida. Com a sua inexistência. 

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Barbas Tortas, 22 de maio de 2014.

Querida Lissa,

É muito difícil fazer qualquer coisa com a chuva caindo lá fora. Faz frio também, aqui nessa escrivaninha. Gostaria tanto de beber um chá. Faz dias que sinto essa vontade. Mas não tem chá. Tem apenas café. Não posso beber café agora. Se bebo, fico sem dormir. E não posso me dar ao luxo de ficar uma noite sem dormir, à essa altura. 
Ando exausta, e feliz. Não escrevo. Não pinto. Não leio. Não assisto a filmes. Não saio. Quase não bebo. Mal converso. Penso. Penso muito. Faço. Não me pergunte exatamente o que, mas tenho feito muita coisa, que não essas que citei anteriormente. O tempo é muito pouco, entretanto. Às vezes esqueço quem sou. Ou que dia é. Hoje mesmo pensei que fosse sexta. Saí do trabalho e disse ‘bom final de semana’. Então me disseram que é quinta. Que bom, pensei, se hoje fosse sexta, não ia dar tempo de pensar tudo o que tenho de pensar até o final de semana. Já errei a semana também. E o ano. Já errei de pessoa. Tenho errado muitas coisas. Mas não meço as coisas por erros e acertos, você sabe. 
Nunca sei o que é dia seguinte. Minha vida chega ao final junto com o fim de cada dia. Quando me instigam a pensar o que posso fazer no outro dia, sinto um vazio. E o futuro é exatamente isso: um vazio que poderei preencher da forma que achar melhor. Hoje, não acho nada. Nunca vou achar nada sobre o amanhã. Ele está longe. E às vezes minha própria consciência sobre a realidade fica longe também. 
Fiz um poema voltando do trabalho. Pensei em escrever. Esqueci logo que cheguei. Ando esquecendo muitas coisas também. Mas não me importo de esquecer porque não lembro que esqueci. Isso anula o esquecimento. E por vezes o desespero. Mas não anula o mar, a água. Não anula o inverno que está chegando.

Com amor e saudade,
M. Batata

segunda-feira, 12 de maio de 2014

E se não fosse assim ainda assim seria assim

E de repente o vazio no meio da tarde de domingo. (Todos cessam as vozes. Restam apenas os pássaros quase cantando. Mas um cantar também meio abatido, meio cansado.) E de repente o vazio no meio do peito, como se alguém tivesse rasgado a linha que divide os seios e roubado o coração agitado. E de repente o sono e a insônia ao mesmo tempo. E de repente o caos. E de repente não mais o medo, mas a apreensão do constante vazio. E de repente o grito oprimido. E de repente um sorriso forçado, a garrafa de vinho lacrada. E de repente os pesadelos, a vizinha gritando, os cachorros latindo, o gato bebendo água da torneira, em cima da pia do banheiro, as moscas zumbindo no meu ouvido.

E de repente a pausa do vazio. A ânsia de vômito. A ânsia. O gotejar antigo. E de repente o final. O estômago revirado com a possibilidade de outro começo. E de repente outra mala para arrumar, outro banho para tomar, outra estrada para pegar e a música que não cessa. E de repente o pensamento de não conseguir pensar, de nunca consegui dizer o que não consigo falar agora. E de repente o filme da câmera que acabou. E a gata que volta com as patas molhadas da pia do banheiro.  E de repente o fim do momento. E de repente a volta do que existe sem de repentes.

sábado, 10 de maio de 2014

Barbas Tortas, 10 de maio de 2014.

Querida Lissa,

quero tanto voltar a escrever textos longos, pensamentos. Quero tanto ter pensamentos. Te mandar cartas e me encontrar nas palavras que preenchem a tela do computador. Ou do meu caderno. Se a gente não fica se repetindo sempre o que é, o que somos, acabamos por esquecer. Até mesmo quando não somos qualquer coisa precisamos saber disso. E recordar a todo instante. Se a gente não vive, acaba sobrevivendo mesmo. E tudo o que eu não quero é empurrar esse cansaço pra frente.
Tudo sempre passa, não é? Mesmo quando volta... acaba passando de novo. E quando volta de novo também passa de novo. Você diria que é um ciclo, talvez. Não sei que nome dou a isso. Acho que no fundo as coisas funcionam como o mar. Tanto no que se refere aos afogamentos tanto no que diz respeito ao que as ondas levam para a areia. 
Estou cansada, mas não é de um jeito ruim. Estou cansada porque não paro mais para ver o céu ou para gostar da chuva. Estou cansada porque aproveito todos os minutos do meu dia para fazer coisas que deixam meus ombros tensos. Não é ruim. Mas deixa corpo e mente cansados. Conto os dias para deixar de ficar cansada. Vinte dias.
Não sei o que te dizer que não te disse antes. Que faça sol aí, amanhã. Que seja praia. Que seja mar. Que seja amar. Que seja cerveja. E se não for cerveja, que seja vinho pelo menos. Que seja paz. Que seja ar. E se não for ar, que seja falta de ar. Mas uma falta de ar por motivos bons.

Com amor. Este, sim, sempre.
M.B.

domingo, 4 de maio de 2014

Fico pensando o que eu vou fazer quando tiver tempo pra fazer o que eu quiser. Talvez eu pense no tempo que não tinha para fazer o que eu queria fazer.

sábado, 3 de maio de 2014

A gente queria ser. Nem sabíamos direito o que queríamos ser, mas isso parecia não importar. E talvez por não sabermos o que queríamos ser é que fomos. Não sei o que fomos, mas fomos.
Farroupilha, 3 de maio de 1999.

Mamãe disse hoje que não devo mais brincar com M., que ela roubou meu coelhinho rosa e isso é uma coisa que não se fez faz. Concordo com mamãe, apesar de não ter dito. M. me maguou magoou muito. Não porque roubou meu coelhinho rosa, ele nem é meu brinquedo preferido, mas porque ela mentiu e me enganou. Falou que eu fui discuidada descuidada ao perder o meu, e que era coincidência ela ter ganhado um igual. Mal sabe ela (e eu!) que isso vai me perseguir quando for adulta, até chegar ao ponto de interferir nas minhas relações com as outras pessoas. O problema é que tenho o coração mole, disse mamãe. Que esqueço o mal que as pessoas me fazem. Mas mamãe também não sabe (nem eu!) que meu coraçãozinho guarda tudo. 
Saí da aula com uma vontade enorme de chorar, mas vovó, que me busca na escola, ficaria preocupada. Guardei as lágrimas para mais tarde. Cheguei em casa e peguei a máquina de escrever de mamãe. Quando chegou do trabalho, ela disse que não é brinquedo, mas deixou eu usar mesmo assim. Acho que viu que eu estava triste. Agora preciso parar de escrever essa carta na máquina. Vou fazer o dever de casa...


sexta-feira, 2 de maio de 2014

Nota de rodapé

³Desde que você foi, Marieta e o radinho de pilhas, que era do meu avô, dividem a cama comigo. É estranho porque Marieta não se mexe, de forma que o lençol está sempre estendido perfeitamente na manhã seguinte. Também é estranho porque Marieta não se levanta para matar os mosquitos que insistem em zumbir nos meus ouvidos, durante a noite. Acordo e vivo o dia, mas a noite é sempre mais complicada. Finjo que janto qualquer coisa, abro uma cerveja e volto para a monografia na tentativa de preencher a mente, já que o coração não pode ser preenchido. Por enquanto. E falta tão pouco para você deixar de ir que isso deixa o meu dia mais leve, embora, como eu disse, a noite é mais complicada. Estou aprendendo a conviver com a falta, apesar de ser quase tarde para essa nova adaptação.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Nota de rodapé

² Dia desses, atravessando a rua, você disse que eu tinha uma capacidade enorme para ser boa, mas que em algumas situações podia ser incrivelmente má. Discorrendo sobre isso, você chegou à conclusão de que tudo está relacionado com a minha bolha. Se ninguém encostar nela, retribuo com um sorriso - ou o que de melhor tiver no momento. Se encostarem/perfurarem, não respondo por mim. Engraçado que isso pode soar extremamente contraditório, uma vez que separamos as pessoas em boas e más, independente da situação. 
Hoje, atravessando a mesma rua, relembrei a conversa e como me sinto mal quando um desconhecido me fita na rua. Esse tipo de ação está no limite entre não encostar na bolha e tocar nela. Nunca sei muito bem o que fazer. Já pensei em responder com uma careta, mas o meu primeiro pensamento é sempre passar a mão na roupa para ver se a camisa está aberta ou se a calça está limpa. Dependendo do dia, essa simples linha tênue pode me deixar louca.
E estes dois parágrafos me fazem pensar nas pessoas loucas de fato. Fico me questionando se elas ficaram assim/são assim porque alguém, algum dia, furou de uma maneira terrível a bolha delas. Uma grande decepção amorosa também é um fato furador de bolhas, acrescento aqui. Não são apenas os toques e contatos visuais e físicos que contribuem para esse estouro. Toda tristeza é um tapa na bolha. Todo medo é mais uma perfuração. 
Agora ando na rua imaginando uma grande bolha ao redor das pessoas. Pelas expressões faciais, vejo uns círculos que comprimem mais os corpos, outros que estão completamente perfurados e alguns que, murchos, caem por cima dos cabelos e se tornam um grande fardo. Entretanto, nunca consigo ver como está a minha própria bolha. Às vezes paro na ponte, em frente ao rio, na expectativa de vê-la refletida na água. Mas a água é tão suja que não reflete coisa alguma.