terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Notes from the couch XXVI

Já não sei mais o que foi que escrevi, se fui eu que escrevi, o que deixei de escrever e o que inventei ou realmente aconteceu. Já não sei mais quem. Não quem sou, nem quem fui. Mas quem. Não sei dos sonhos, das realidades costuradas em cima dessa cama quente, das realidades estraçalhadas em cima dessa cama quente, das manchas dos lençóis, das manchas que poderiam ter existido, mas não existiram. Já não sei mais o antes. Nunca o depois, jamais o depois. Mas não saber o antes é como estar no alto de uma ponte de dois centímetros, o corpo leve, os pés nus, sem machucado algum, esperando pelo momento de sentir o vento embaraçando os cabelos. Acho que nunca fui, embora muita coisa tenha acontecido e várias vezes reconstruí a cena, os olhos, o nariz, os ouvidos. Os finais. Só para poder fechar o livro com a consciência leve. Leve a minha consciência, tantas vezes eu disse. Mas nunca levaram. Nem eu mesma fui capaz de lavar. Tudo o que eu fiz foi inventar. E é por isso que já nem sei mais o que foi que escrevi.

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Notes from the couch XXV

Acho que é o calor, eu te digo. Ela está cansada. Diz que trabalha todo dia até as 20h. Mal vê o dia. Ele nasce e morre enquanto está naquele escritório sem ventilador ou ar condicionado. Ironia não ter ar condicionado em uma loja que o vende. Acho que agora ela me entende quando eu quis ir embora porque ficava tempo demais naquela sala. Acho que agora ela entende quando eu dizia que fazia quase 40 graus naquela sala. Não queria que ela entendesse, se isso significa sentir na pele o que foi. 
Chego em casa e tomo um banho gelado. O chuveiro dá choque. Ela chega em casa e ouve os gritos, os resmungões, vê cara feia e louça suja na pia. Ele me espera com a minha música preferida e a comida quase pronta. Não tenho do que reclamar. Mas escrevo para ela reclamando dos mosquitos que não me deixam dormir. Ela me escreve as mesmas coisas sobre os mesmos dias. E quando me diz, pelo telefone, sua voz ecoa na minha cabeça. É a mesma frase e a mesma voz dos últimos vinte anos. Apenas algumas rugas a mais, alguns quilos a mais. Mas a balança nos engana: mostra que estamos mais magras. 
Não lhe digo nada. É final de ano, penso. Nem parece. Lá, parece. As ruas estão enfeitadas desde novembro com papais noéis de pano. Aqui, enfeite algum nos postes. Só o meu na porta, uma fita mimosa vermelha com duas cabeças de Barbie e laços. Na casa dela, o mesmo pinheirinho de todos os últimos natais. Eu lhe disse que nesse ano quero fazer a ceia, que terá champagne, música e o arroz preferido dela, mas não lhe disse que não haverá presentes. Não tenho dinheiro. Bebo menos cerveja, mas não é por isso. Não sei por que é. 
Vai acabar de novo. Nem vi passar. Acho que nem ela viu. E novamente as mesmas promessas para os próximos anos. Uma pitada a menos de expectativa. Uma pitada a mais de realidade. Menos ilusões para carregar de um ano para o outro. Assim, vamos mais leves. Ela e eu. Nós. Eu e ele. Eu, ele e ela. Sem o outro ele. Talvez um dia, acho que ela ainda pensa. Não penso mais.

"Tudo era para amanhã, mas o amanhã jamais chegava. O presente não passava de uma ponte, e nessa ponte eles ainda gemem, como geme o mundo, e nenhum idiota jamais pensa em explodi-la." Henry Miller

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Audácia

Hoje eu vou dormir com a janela do quarto aberta. O meu sono (ou insônia) vai ver o dia nascer.
Tô com uma sede que não passa
Uma vontade que não cessa
Uma culpa que não arde

Tô com uma expectativa que não nasce
Uma escrita que não acontece
Uma música que não é feita

Tô com os nãos e os sins
Mas no momento só quero os sins
E são eles que se escondem

Traga-me os sins, sim? 

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Achei que passaria


Noite passada aconteceu outra vez. Saí de mim dentro de mim. Meu isqueiro quebrou e eu pensei que poderia ir ao mercado para comprar fósforos. Tudo em mim era legítimo: os pensamentos, as falas, os medos, o coração grande batendo rápido demais, provocando dores, pesando no peito. E a paz, claro. Abri a porta de casa e a rua não era mais a mesma. Sequer a cidade. Mas tudo parecia correto. Meus olhos não estranharam a diferença. Não viram diferença. E eu comecei a subir a rua e logo percebi que todas as ruas eram construídas em cima de morros, que era final de tarde, não mais noite, e que as pessoas se acumulavam nas esquinas. Umas esquinas de uma cidade sem nome. Todas elas vestidas com roupas coloridas. Vestidos longos em corpos magros. Homens e mulheres e crianças. 
Continuei caminhando e logo me dei conta de que faríamos uma apresentação. Era uma grande festa. E pensando na coreografia me assustei porque o meu grupo não havia se preparado. Comecei a sentir aquela agonia que volta e meia aparece, uma agonia de não ter feito o que devia, a culpa fazendo as mãos suarem. E a agonia anunciou: "isto não é um sonho". Porque um dia alguém me disse que não se sente durante o sonho. Sentir era a prova da realidade. 
Foi muito rápido que eu pensei e logo nós dançamos na rua, todos os olhares voltados para os nossos passos, para os nossos corpos leves e nossos olhos calmos. Estávamos em sincronia e comecei a me questionar se eu tinha perdido a memória, se realmente havíamos ensaiado, porque meus pés seguiam perfeitamente o embalo. Mas preferi ficar sem resposta e continuei movendo os pés, as mãos, os braços nus. É sempre melhor não ter consciência de que não se tem consciência. 
Também foi muito rápido que tudo terminou. Talvez realmente tivesse sido a falta de memória, porque quando me dei conta restava o silêncio da noite, o vazio das ruas e os meus pés descalços na calçada morna. Como em uma cena de filme, todos haviam sumido. Restavam apenas as luzes amareladas dos postes altos, o chão cinza e os meus pés que sequer estavam incomodados com a textura do piso. Respirei o ar da noite, que percorreu todo o caminho, até o pulmão, onde se fixou ao vazio. 

Comecei a olhar em volta procurando os rostos conhecidos, talvez escondidos, mas só vi uma árvore. E olhando pro topo da árvore me senti leve, tão leve que pensei ser possível voar. Nada me pareceu mais óbvio e fácil. Inclinei o meu corpo para frente e comecei a bater os braços, como se eles fossem asas. Sem dificuldade, vi-me a dois metros do chão. E já não era mais preciso força, porque conseguia me manter estável no ar. Meu vestido longo e vermelho era atingido a cada pouco por uma rajada de vento, e partes dele dançavam. 
A agonia se dissipou, como se, com o meu corpo subindo, ela tivesse oportunidade de cair de mim. Fechei os olhos e senti a leveza. Então eu lembrei de todos os meus sonhos em que, de alguma forma, eu voava. Os momentos eram sempre diferentes, mas a sensação se igualava. Ouvi um pigarro e voltei a enxergar. Um par de olhos escuros observava por baixo do meu vestido. Instintivamente voei para o galho mais alto da árvore e me sentei. O homem gritava, tentava subir na árvore. Olhava-me com fúria. E com medo o encarei. Ninguém na cidade além de nós dois. 

E do medo, a perda. A perda da realidade, julguei eu quando ele tirou um facão da cintura e atingiu-me. Cortou-me os pés, o senhor. E eu nunca mais pude voltar ao chão. Estou, pois, para sempre, voando.

"A coisa incrível nessas alucinações é que elas têm sua substância na realidade." Henry Miller