domingo, 30 de outubro de 2011

Sobre o abismo de um domingo sem rima

Nos olhos, a tristeza de todos aqueles idosos, tristeza multiplicada por cada ano de cada vida que estava sentada no sofá, na tarde melancólica de domingo. Ela pesa mais de mil e cem anos. No lixo novo, cor branca com algumas bolinhas, apenas quatro latas de cerveja, ainda geladas, e umas folhas amassadas na noite de sábado. Na cama, o livro do Abreu aberto na página 134, onde diz “tantas esquinas na cidade, caminhos diversos, descruzados, por delicadeza, por atenção gratuita, involuntária, natural, jogada um sobre o outro”. Na janela, o vento de fim de tarde fazendo a cortina branca dançar, sem ritmo algum, sem som, sem forma, sem sentido. Na rua, alguém passando, chutando as pedras que insistem em se soltar da calçada antiga, cantando mentalmente alguma música do momento, pensando quanto falta para o próximo final de semana e depois para o fim do ano e para o fim da vida. Na caixa de entrada do e-mail, vazio. Na caixa de saída do e-mail, vazio. Na pasta de rascunhos, cinco e-mails não enviados.
Eu te busco, menina. Lá onde o precipício sorri e as nuvens quase podem ser tocadas. Eu te busco e te trago nos braços, murmurando qualquer ritmo que faça você dormir, arrancando o cansaço e suprindo toda a falta que você anda sentindo. Eu te busco e deixo você ficar em casa por uma semana, pintando as suas camisetas, recortando as imagens das revistas, fazendo um novo álbum, uma nova vida. Eu te busco e faço a tua janta, conto uma história antes de você dormir, sem príncipe encantado, sem altos e baixos, sem lençóis de veludo, amores, e finais. Você não precisa de mais fins e fins e fins. Sempre acumulando o que deve ser vomitado. Sempre colecionando problemas que não são seus.
Na boca, a linha do lábio rachada por causa do vento de inverno no meio da primavera. Na escrivaninha, o óculos pousado. Na sala, alguém discutindo sobre a mobilidade dos dias, dos relacionamentos, das famílias, dos princípios. No quarto ao lado, alguém pisando forte, batendo a porta com o a maçaneta quebrada, danificada de tanto ser batida logo após as brigas que sempre se repetem, inutilmente, e não sendo sustentadas por argumento algum. Na cozinha, iogurte na geladeira, o almoço intocado guardado em um refratário. A casa reclama enquanto o dia morre. A porta do quarto trancada, o lixo cheio e cheio e sempre mais cheio de histórias que não podem ser concluídas e de latas com o líquido de cor indefinida que faz a menina chorar.
Eu te salvo, menina. Te salvo desses pesadelos que chegam quando você ainda está acordada. E eu digo para os sonhos não insultarem a tua realidade. Eu te salvo e pinto o seu quarto já há tanto tempo desbotado pela confusão das noites que danificam o caminho. Eu te salvo, menina. Te salvo das cartas que nunca chegam, dos dias que não amanhecem e de quando você levanta da cama às sete da manhã, mas acorda, realmente, às cinco da tarde. Vou costurar a loucura com linha vermelha, aquela que você disse que nunca podia ser usada, pois não combinava com vestimenta alguma. Eu te salvo e este é o momento, porque todos os outros já aconteceram: tarde demais, cedo demais, mas passaram. E das fotos você não guarda sentimento algum. Tudo está dentro de ti, rasgando os órgãos por onde passa, resmungando uma piedade inventada e anunciando o que já faleceu quando você se olhou no espelho. Todo reflexo é uma possibilidade de encontro. Eu te salvo, menina. Te salvo dessa tua vontade de se perder.

sábado, 29 de outubro de 2011

Pupilas dilatadas antes do pôr do sol inexistente

A calça rasgada, o cabelo molhado, o tênis furado, os objetivos desbotados. Caminha na chuva, o caderno com as páginas todas desenhadas, parafraseado, riscado, amassado. Ele protege o livro de 700 páginas que nunca tem fim, salva do tempo ruim a capa destruída pelos tombos constantes quando a menina esquece que carrega um livro nos braços. Os pingos finos e gelados lembram chuva de verão. Os passos dela são lentos e se perdem em um caminho que devia estar decorado. O rosto se deixa molhar. A língua percorre os lábios molhados. Não há qualquer gosto. Os olhos se fecham e tentam descobrir algum tom guardado para a noite, alguma trilha sonora de música clássica, algum passo de dança delicado. Não há nada.
E enquanto o cabelo se encharca, aos poucos, pensa que não sentiu nada, exceto sono, o dia todo. Pensa que a chuva lava por dentro, que a meia molhada é o que menos importa, que a camiseta branca, grudada na pele, deixando à mostra o sutiã que não pode ser visto de noite, não a faz ficar envergonhada. Pensa que a chuva quase vira tempestade e depois mar, mas que no fundo não passa de gotas que aliviam o desastre do dia e abafam os passos pesados da insônia, que chega com sapatilhas de pano, no asfalto molhado, que é para não ser ouvida. Mas a menina ouve.
Cada vez que os pés da insônia tocam o chão, o barulho ecoa, como o tintilar de garfos. E é tão alto, apenas para ela, que por fim se torna insuportável. A menina chega em casa, desfaz a trança no cabelo, desembaraça os fios ainda encharcados, deixa a roupa na área de serviço e liga o chuveiro. Enquanto a água cai, ouve a insônia colocando as malas no quarto. Alguns pensamentos lúcidos, que só chegariam quando ela ficasse bêbada, invadem-na. Se enrola na toalha, prepara a mesa para duas pessoas, coloca dois pratos para pizza, dois copos com água e três cubos de gelo em cada. Senta-se e conversa com a insônia. As duas se esquecem de comer a comida imaginária e não se deitam porque o dia está quase amanhecendo outra vez.


"Talvez consiga dormir. Talvez consiga acordar amanhã finalmente livre de tudo isso. Terei apenas um corpo, poucos pensamentos, todos pequenos." Abreu

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Para B., meu segundo amor

frases escritas, mentalmente, durante um banho fantasiado de chuva de verão

Tem aqueles que morrem querendo viver
E aqueles que vivem querendo morrer

Às vezes são apenas uma massa de pele
Outras, são apenas uma massa de sentimentos

O que difere um tipo do outro
é a tristeza que escorre dos olhos

e a tristeza que não escorre de lugar algum

Todos vivos por respirar
E respirando por se salvar
E se salvando por continuar
E continuando por continuar

Todos vivos de pele e de osso
de movimento e não de amor
Todos vivos de desejos e objetivos
e não de sonhos e de dor

Tem aqueles que morrem querendo morrer
E aqueles que vivem querendo viver

Estes sentem a alma que carregam
E sabem o peso da diferença

O que difere eles dos outros
É a falta de relutância em ser o que não querem

Aceitam o próprio destino
Sem saber que ele existe
Aceitam a fuga
Sem saber que estão fugindo

Aceitam os fatos
Sem saber que são protagonistas
Aceitam a cárcere
Sem saber que estão presos

Aceitam o mundo que os agride
Sem sentir as dores
Aceitam o fim
Sem saber que havia um começo

E terminam como folhas de outono
depois que o outono termina

sábado, 22 de outubro de 2011

"canções como as que nenhum rádio toca
toda a tristeza, escarnecendo em correnteza." Bukowski

A camisa azul amassada, as unhas não cortadas, a calça arrastando no chão, uma marca de chocolate no joelho. O cabelo preso em um coque bem alto, todos os fios emaranhados por causa do vento, e desbotados pelo sol. Dentro da mente, a loucura escrita com traços retos demais, delicadamente, em preto. Não há nada a ser feito. Não há nada a esperar, desejar ou procurar. Apenas o desespero corrompendo o brilho nos olhos e se transformando em obsessão. E as olheiras no rosto rimam com o peso dos fatos, refletivos em um brilho que, de tão distante, é bonito.
Os passos sequer são ouvidos quando ela caminha. A sutileza quase ocupa o lugar da calma. E os atrasos constantes são a única prova de que não há por que se esgueirar. O canto da máquina ecoa dia e noite, mesmo que distante, no inconsciente. As notas são altas demais para deixá-la dormir. E, quando a melodia se torna silenciosa, por míseros segundos, os pesadelos roubam o sono de menina doce. As mãos não podem escrever. A mente não pode pensar. Os sentimentos ocupam todas as entranhas, as brechas, as gavetas trancadas e empoeiradas, e pesam tanto que o corpo sente o que o interior já não pode, de tão anestesiado pela dor.
Alice não chora porque o estoque se esgotou. E, estando esgotada, não nota que a lucidez é o único perigo. O sono roubado não lhe causa prejuízo algum, exceto a certeza de que os dias se tornam mais longos e as noites somem quando a lua a abandona. Não há abandono maior do que estar preso em um mundo que não é o seu. Não há angústia maior do que ver-se crescer dentro desse mundo pequeno e ser achatada pela certeza de ficar preso a ele. Alice não chora porque as lágrimas aliviam. E o alívio é a confirmação de um fim inventado. Sabe que a previsão é o único pecado que pode cometer.
Todo o dia que amanhece com sol, amanhece com gosto de chuva. E toda a noite que amanhece sem estrelas, amanhece com gosto de adeus. O pior de sentir o gosto de adeus é saber que não se pode ir, que os pés estão presos ao chão, que os fatos são imutáveis e que o único fim é aquele começo, no final da rua, na mesa, sozinha, com connhaque para engolir a confusão.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Entre rascunhos vazios e cervejas intocadas
Sou o meu próprio invento e o pesadelo dos dias bons
As incertezas ecoam de cabeça para baixo

O jeito delicado como fazíamos aqueles barcos de papel, sempre com folhas brancas de caderno, para colocarmos na chuva de inverno que nunca cessava. É claro que eles acabavam afogados nas poças e pisados por estudantes que não se importavam com as vidas imaginárias que insistiam em sobreviver. É claro que nós nunca demonstrávamos a nossa tristeza, a empatia pelos barcos, a sensação estúpida de estarmos sendo pisadas a cada chuva forte que caía dentro da gente. E o engraçado é que ela nunca parou de cair, mesmo depois do meu enclausuramento repentino e do seu limitado demais para se igualar à minha condição sensível. Sensível o tempo todo. Sensível até quando não deveria ser. Nunca consegui me manter dentro dos padrões, você bem sabe. E esse sempre foi o meu problema. O seu sempre foi conseguir se manter estável, apesar da instabilidade que insistia em te apunhalar.
Ainda consigo ver o meu cachecol colorido, o seu xadrez e o vidro embaçado quando ficávamos observando por tempo demais os nossos sonhos dentro daqueles papéis sem conteúdo, navegando nas poças, dançando por causa do vento e depois afundando, lentamente, e levando para o fundo um pouco da gente. Nunca falamos sobre isso. Mas eu sempre via os seus olhos úmidos e percebia que você encarava os meus lábios secos e rachados por causa do frio. Ainda não era o tempo de batom vermelho. E não sabíamos que esse tempo viria a existir e protagonizar e deixar marcas tão profundas que não podem mais ser costuradas e cobertas por uma tatuagem. Mas o que sobrou disso é apenas uma foto em baixa resolução de três ou quatro navios ainda lutando pela sobrevivência no inverno. Eles pareciam gigantes para nós. E eram, de fato. Mas eu nunca vou te dizer que conjugo o verbo no presente.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011



Descendo a escada longa de pés descalços, as unhas com esmalte vermelho descascado, os olhos úmidos, os dentes brancos escondidos, as orelhas sem brinco, o cabelo liso demais, a saia vermelha amassada, os sonhos rasurados e jogados no lixo, todas as possibilidades não passando de meras possibilidades, a insônia ao lado da cama, a cama desarrumada, os lençóis brancos sujos de batom vermelho, a janela do quarto sempre fechada, a cozinha toda inutilizada, os livros cheios de pó, e alguma coisa... alguma coisa chamada sentimento saltitando dentro do peito, fazendo doer, fazendo gritar, o mundo todo azul desmanchando... desmanchando e escorrendo pelas ruas cinzas, tudo se diluindo. E a menina descendo a escada longa com as mãos cheias de jornais antigos, a mente sussurrando qualquer música clássica lenta, uma valsa, duas valsas, descendo mais rápido, a luz apagando, não é dia, não é noite, não há canto dos pássaros nem lua nem sol nem árvores nem vento nem... Há apenas o nada ecoando e uma caixa cheia de certezas partidas e expectativas anuladas. A máquina canta quando as tempestades caem. Mas, ultimamente, não há chuva e as cervejas descem rasgando o peito, ao lado da solidão. Mas descem. Descem e permanecem no estômago frágil, quase de mentira, quase desenhado para não durar. E depois de descerem mandam uma mensagem para os olhos e eles se fecham e ninguém fala. Há um silêncio completo. E ela sobe as escadas, os pés ainda nus, o mesmo repertório, os degraus imaginários, a vida invisível, a mão segurando no corrimão de madeira, que cede, cede até que o seu peso é quase tão insuportável quanto a perfeição.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Eu e a gata sentamos em minha cama nas tardes de domingo, enquanto todos estão correndo pelo parque ou contando sobre a festa da noite anterior. Eu leio alguns poemas do Bukowski, em voz alta, para ela. Sublinho os títulos de três ou quatro para reler mais tarde, antes de dormir. A gata tem nome de chocolate, mas gosta de danoninho. Depois de umas vinte poesias, eu levanto e caminho até a geladeira. Pego um danoninho e volto para o quarto. Ela mia. Como a metade e deixo o resto para ela. O focinho da gatinha fica todo branco e ela se lambe toda. Quando termina, se aninha no meu peito e eu leio mais alguns poemas. Depois pegamos no sono, enquanto o final da tarde fica colorido e as estrelas surgem bem de leve, o que já não consigo mais ver. Os passarinhos cantam. Ela não liga. Eu não ligo.

"Hora de ir embora, já afaguei o gato, me despedi de Deus e da Pomba, e quero deixar a cozinha hedionda em meio a um sonho dourado perverso." Kerouac
Chuva de pedra de gelo
Tempestade de raios
E o eco da ausência

E todas as esquinas
As histórias não vividas
A insônia amiga
O riso sedento
Os princípios dilatados pelo sol
As máscaras trincadas
As reticências esmagadas

E todas as encenações
O desespero afogado
O amor prolongado
A calma precipitada
A loucura arruinada
A indiferença confundida
As lembranças partidas

Chuva de lágrimas de verão
Tempestade de pensamentos
E o eco da liberdade