sábado, 29 de outubro de 2011

Pupilas dilatadas antes do pôr do sol inexistente

A calça rasgada, o cabelo molhado, o tênis furado, os objetivos desbotados. Caminha na chuva, o caderno com as páginas todas desenhadas, parafraseado, riscado, amassado. Ele protege o livro de 700 páginas que nunca tem fim, salva do tempo ruim a capa destruída pelos tombos constantes quando a menina esquece que carrega um livro nos braços. Os pingos finos e gelados lembram chuva de verão. Os passos dela são lentos e se perdem em um caminho que devia estar decorado. O rosto se deixa molhar. A língua percorre os lábios molhados. Não há qualquer gosto. Os olhos se fecham e tentam descobrir algum tom guardado para a noite, alguma trilha sonora de música clássica, algum passo de dança delicado. Não há nada.
E enquanto o cabelo se encharca, aos poucos, pensa que não sentiu nada, exceto sono, o dia todo. Pensa que a chuva lava por dentro, que a meia molhada é o que menos importa, que a camiseta branca, grudada na pele, deixando à mostra o sutiã que não pode ser visto de noite, não a faz ficar envergonhada. Pensa que a chuva quase vira tempestade e depois mar, mas que no fundo não passa de gotas que aliviam o desastre do dia e abafam os passos pesados da insônia, que chega com sapatilhas de pano, no asfalto molhado, que é para não ser ouvida. Mas a menina ouve.
Cada vez que os pés da insônia tocam o chão, o barulho ecoa, como o tintilar de garfos. E é tão alto, apenas para ela, que por fim se torna insuportável. A menina chega em casa, desfaz a trança no cabelo, desembaraça os fios ainda encharcados, deixa a roupa na área de serviço e liga o chuveiro. Enquanto a água cai, ouve a insônia colocando as malas no quarto. Alguns pensamentos lúcidos, que só chegariam quando ela ficasse bêbada, invadem-na. Se enrola na toalha, prepara a mesa para duas pessoas, coloca dois pratos para pizza, dois copos com água e três cubos de gelo em cada. Senta-se e conversa com a insônia. As duas se esquecem de comer a comida imaginária e não se deitam porque o dia está quase amanhecendo outra vez.


"Talvez consiga dormir. Talvez consiga acordar amanhã finalmente livre de tudo isso. Terei apenas um corpo, poucos pensamentos, todos pequenos." Abreu