quarta-feira, 31 de março de 2010

Ela gosta dos detalhes. Não os detalhes concretos, mas aqueles que pendem num olhar: o brilho se apagando junto com o sorriso, as olheiras fundas de talvez uma noite mal dormida ou a própria insônia. Tudo isso ela percebe e é difícil enganá-la nessa questão.
Não sente saudade, sente tristeza. Talvez porque não sabe a diferença entre uma e outra acaba misturando num jarro só e bebendo disso como se bebe uma jarra de água em apenas um dia. Os motivos da tristeza nunca existem ou, se existem, não são claros. Não que ela goste de sofrer, mas a tristeza vem por um dia ou dois, acomoda-se no seu interior e depois parte sem motivo algum, também.
As palavras é a única coisa certa para ela. Todo o resto sempre acaba enjoando-lhe: as pessoas, as cores, as músicas, as comidas, as festas e, inacreditavelmente, o seu próprio reflexo no espelho.
Os motivos não são essenciais em sua vida. Perdera tantas coisas sem motivo que hoje ele não tem lugar dentro dela. A noite é para ela a lucidez e a loucura, uma mistura de incoerências e paz que não se pode traduzir. Gosta da noite porque é dela que vem as palavras e é nela que tudo vive e que tudo morre. Não gosta do dia porque ele é claro demais, cansativo demais, não acaba nunca. E quando acaba deixa uma certa melancolia.

Vinho, ar puro e fotografia. O vento gelado do inverno e o nascer do sol no verão.
Música, mar e incoerência. A anomalia de cada rosto mergulhando em seu ser.

Justificar

segunda-feira, 29 de março de 2010

Um milhão de estrelas caindo. E a melancolia dentro de um vidro com tampa, em cima do bidê.
Um milhão de nuvens com formato de animais. E os olhos cegos pelo inconformismo.
Um milhão de sorrisos emoldurados na parede. E a incerteza ali, no coração.
Um milhão de frases incompletas. E a perfeição do lado, nas reticências.

Sempre as reticências.
Sempre as incertezas.
Sempre o inconformismo.
Sempre a melancolia.

Que morram e nunca mais renasçam.
Que morram e virem pó.

sábado, 27 de março de 2010

Falava, falava e falava. Tudo o que saía de sua boca, porém, não passava de um silêncio estendido que não pretendia ter um fim. Não tinha importância. Se eram as palavras ou o silêncio que preenchiam os dias que diferença podia fazer? Um é o reflexo do outro mesmo que todo mundo diga que são antônimos.
Passava as madrugadas de sábado assim, talvez falando para si e desejando que ninguém pudesse entender as suas palavras. O castelo de vidro durava até o nascer do sol. Depois do nascer do sol os dias eram uma incoerência absoluta, tinham gosto de poeira, talvez fossem mesmo poeira.
Meses. Anos. Séculos. Não sei quanto tempo ela permaneceu ali. Não sei quanto tempo sua vida foi remota e sem gosto. Não sei por quanto tempo as cores não ultrapassaram o limite do cinza.
Encontrei-a no mesmo silêncio que me falava nas cartas. Costurada e remendada, uma perfeita boneca de pano. Sua boca não era pintada de vermelho, era apenas um contorno simples e preto. Sem roupa, sem cabelo, sem alma.

Levei-a para o bar. Sentei-a num daqueles bancos velhos e ela permaneceu. Bebi cinco cervejas e chorei a tristeza de nós duas. Chorei a tristeza do seu corpo vazio igualmente ao meu. Chorei a melancolia que nos envolvia como uma bolha. Chorei as cores apagadas. Chorei sem lágrimas.
Peguei o batom vermelho que havia na minha bolsa e passei naquele contorno que se entendia por boca. A boneca de pano imediatamente esfarelou-se. No fim não sabia quem era ela e quem era eu, qual era a tristeza dela e qual era a minha. A boneca de pano era o meu reflexo.


"Eu estava triste, tristeza da verdadeira, por uma vez na vida, por todo mundo, por mim, por ela, por todos os homens.
É talvez isso que a gente procura pela vida afora, só isso, a maior tristeza possível para nos tornarmos nós mesmos antes de morrer." Céline

quinta-feira, 25 de março de 2010

Era inevitável, eu acabava indo sempre pro lado onde a corda balançava. Caía sim, caía com a boca extasiada pelo gosto. Nunca mudava. A sequência não podia ser alterada, o ciclo nunca se rompia. Dia após dia esse desejo ininteligível pelo perigo, pela quebra da paz, pela quebra de mim mesma. Sem finalidade. Sem prever uma consequência. Por quê?

Ir por apenas ir.
Nunca se sabe.

Nunca se sabe.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Pegou um cigarro, saiu da aula e acendeu. Aquele ar de quem não está nem aí para os outros. Aquele ar de quem não está nem aí para si mesma. Mas sabia o caminho e o jogo que deveria jogar e sabia que eu era mais uma vítima. Alguém tinha que perder. Era difícil iniciante não cair.
A noite me avisando do perigo e eu querendo o perigo. Morrer na incerteza. Cair no silêncio perfeito. Quem sabe quebrar o último traço de um eu antigo? Eu só queria arriscar mesmo que fosse pra perder tudo. Mas da minha coragem brotava apenas covardia.

Como se pinta a boca sem borrar?
Como se acende o sol de domingo sem se queimar?


"A melhor coisa a fazer, quando estamos neste mundo, é sair dele, não é? Louco ou não, medo ou não." Céline

sábado, 13 de março de 2010

Tem uma camiseta do Chaplin já surrada e um óculos que lhe dá a aparência de cômica. Come patê de atum quase todo dia. Não porque sente fome, mas porque é uma rotina e dela não pode se desfazer.
Acumula tantos 'elas' dentro de si que já não sabe mais qual deles é o real. Não que realidade seja uma coisa essencial na sua vida. A perda da sua própria identidade a liberta, dá-lhe asas para escolher as cores do seu rosto e da sua vida.
Palavras. Sempre em busca de palavras. Porque pra ela palavras significa ar. E sem ar não pode viver. Sente a morte seguida quando as frases não preenchem o dia. Sente sua respiração lenta e torturante, já sabendo que o próximo instante pode ser fatal.
Como definir aquelas fotos que já perderam a importância? Enfeite. Comodismo. Passado.
Tem dificuldade em escrever no presente. Tem dificuldade em esperar. Corre, corre e cai. Quase nunca sente vontade alguma em levantar. Por que é que não acredita em verdade? Talvez porque verdade não é pra ser acreditada, é pra ser simplesmente digerida. E ela não sabe digerir.
Maria. Outra Maria. Mas ela é, sim, uma Maria. Comum e complexa. Feia e estranha. Cheia de plural e aspas. O cabelo oleoso e as mãos pequenas. Sempre a espera de um rompimento de algum fio da sua vida. Tem poucos. Por isso que tem medo.
Arrota o que não come. Sonha o que não existe. Acorda no meio da noite pra ter certeza de que está viva.

Mas nunca sabe quando sonha e quando vive. Não sabe nem ao menos se é real. Mas o que eu disse antes mesmo? Ah, que realidade não é uma coisa essencial na sua vida. Então tanto faz.

segunda-feira, 8 de março de 2010


Entendo a repulsão do mar e quando ele tenta, sutilmente, deixar a praia vazia para receber a paz.
Entendo seus gritos na madrugada. E quando a lua brilha sobre ele alguma coisa se faz.

O mar tem vida.
Ele morre também.
E desfalece e dorme.
Dói nele também.
E quando a dor passa ele sorri.
Sabe das palavras com o silêncio.
E olha com olhos de quem sabe o que quer,
mais do que paz: amor.

sexta-feira, 5 de março de 2010

Uma boca em forma de coração e lábios tão bem pintados que é a primeira coisa que alguém nota quando a conhece. Vamos chamá-la de Dolores porque não faço a mínima ideia do seu nome. Não, não a Lolita do meu livro. Até porque essa Dolores deve chegar perto dos 30 e a minha Lô tem apenas 13.

"[...]Morrendo, morrendo, Lolita Haze,
De ódio e de remorso, estou morrendo.
E torno a erguer o meu punho peludo,
E torno a ouvir você chorar.[...]" Vladimir Nabokov

Unhas bem pintadas e a blusa aberta nos ombros deixando escapar a marquinha de biquini. Peculiar, essa é uma boa palavra para defini-la. Voz fina e delicada, mas ela é o tipo de pessoa abusada que se intromete quando os outros falam e vai baixando a voz para se fingir de inocente. Mas não consegue me enganar. Alta, magra e sem peitos. Mas tem charme. Não sei se fuma.
A Dolores parece com a Amélie Poulain e acho que todo mundo percebeu isso porque uma hora alguém arrumou um motivo pra falar do filme. Eu ri.
Ela olhou pra mim uma ou duas vezes, aqueles olhos com um brilho estranho, brilho de quem pensa já no próximo passo sem nem ter dado o anterior direito.

"[...]Meu carro fraqueja, Dolores Haze,
E o último e longo trecho de estrada é o mais duro,
E eu tombarei onde as ervas daninhas apodrecem,
E o resto é corrupção e refulgir de estrelas.[...]" Vladimir Nabokov

Acho que a Dolores sabe escrever, muito bem, aliás. Mas ela não deve saber brincar com as palavras como eu e isso ela deve ter percebido nas duas vezes em que me olhou. Sentiu. Duvido que depois disso se aproxime de mim. Uma pena!

quarta-feira, 3 de março de 2010


"Se eu tivesse que me esforçar para te escrever ia ficar tão triste." Lispector

Ela era a minha menina. Tantas vezes eu tive vontade de pegá-la no colo e fazê-la dormir e dizer pra ela não usar lápis porque ficava vulgar. E as suas bochechas tão rosadas dignas de uma mordida. Foi, agora, a minha maior decepção. Não que ela tenha culpa, a culpada sou eu. Expectativas demasiadas em cima de uma sólida amizade. Mas dela eu jamais esperei isolamento depois que ela encontrasse o amor.
A minha arquiteta de óculos rosa agora não é mais minha. E já não temos mais a intimidade de conversar e chorar e de eu tirar o casaco e emprestar pra ela quando a noite se fizer fria.
Morre alguma coisa em três meses em que o contato é escasso e não se tem acesso ao brilho dos olhos. Talvez essa tenha sido a coisa que mais doeu em mim.
Nossos sonhos borrados com têmpera numa folha peso 60 se foram.
Nossos melhores dias com o céu azul e sem nuvens também se foram.
Há uma melancolia e um fio de distanciamento que nos separa. E mesmo que os finais de semana se moldem para fazer reviver a minha menina, vai faltar, vai faltar a cor que sempre foi crucial.
Da menina eu tenho os seus desenhos no meu mural e a música que ouvíamos juntas no mp3.
Dói, mas o que eu posso fazer? Perdi-a pra um amor, talvez um amor maior ou um amor que se diz maior.
Mas em mim ela sempre vai estar, talvez não intensamente como antes, mas lá, lá no fundo.


terça-feira, 2 de março de 2010

As faces de uma maldita instabilidade. Pragmático. A sensação de quando caía era a mesma sensação de quando levantava. O ócio estampado nos olhos, esperando o próximo passo do ciclo.
Nu e a mercê de uma lucidez tão pura que chegava na loucura. Existia só um caminho e nele tudo se encontrava, você não podia separar abstinência de tentação.
Nu e corroendo a própria mente no escuro, sem saber que o que corroía lhe pertencia de fato.
De um grito escapava o desejo de silêncio. Das lágrimas brotava o desejo da seca. Incredulidade do destino. Ah, o destino.
Dói a cabeça nessa melancolia sem fim. Afunda, afoga e revive. Revive porque renascer está longe de acontecer.


A loucura tinha muitas portas de entradas mas tão poucas de saída.