quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Sobre Dom Pedro

Eles bebem no começo da tarde. E no começo da noite. E no começo da madrugada. Não há nada que se possa fazer em relação a isso. Dizem que bebem para amenizar o calor, mas o álcool no sangue faz tudo ficar ainda mais quente. Gotículas de suor se formam nos narizes. O dela é sardento demais. O dele é moreno. Colecionam calor nos rostos, nos corpos, mas nunca nas mentes. As mentes ficam livres da sofreguidão do verão. Nuas, se privilegiam das brisas proporcionadas pela cerveja gelada. E logo as mentes ficam geladas também.
Bebem e tocam, os dois. Como se música fosse algo muito simples de se fazer. E é. Eles fazem com que seja. Ele arranha as cordas do violão. Ela improvisa as batidas na perna branca. Ele deixa surgir uma letra na voz rouca. Ela entra com a gaita no momento certo. E nem sabe direito que notas toca, mas toca.
Não importa se é a primeira ou a última cerveja. As canções nascem no quarto. Nunca saem pela janela aberta. Não sobrevivem no mundo. Sobrevivem e vivem apenas dentro da peça úmida e quente, amenizada pelo ventilador barato, pela geladeira constantemente aberta e pelas toalhas molhadas estendidas em cima da cama para afastar o calor.

Oh, as canções. Notas e melodias e sentimentos em cinco minutos. Minutos que nunca terminam.
Vou ficar na água sanitária por uns dias. Preciso me descolorir. 

domingo, 26 de janeiro de 2014

O fim do que nunca acaba



O barulho do tic-tac do relógio grande, postado no meio da sala, disputa a trilha sonora da casa com o som que sai da televisão ligada, escondida em um canto da cozinha. Nem um nem outro consegue estancar o silêncio. Fazem-no pesar ainda mais. É como se gritassem a falta de sons humanos. Como se denunciassem o cenário alterado da casa de madeira, pintada de verde, com venezianas brancas. 
O vento entra pela janela e corta o tic-tac, mas faz balançar o calendário novo, recém pregado à parede, o rosto de um bebê estampado na página, o mês de janeiro logo abaixo da escrita 2014 - em letras de forma. É como se a criança desse vida ao mês. Mas há tudo no mês de janeiro, menos vida. O calendário divide a casa, mas não divide o sentimento. De um lado, o quarto vazio de menino, ainda organizado. Do outro, a sala, o cômodo onde Maria Aparecida passa a maior parte do tempo, calada, ouvindo e vendo o silêncio no computador do filho, ainda acomodado no canto direito.
Maria Aparecida não sabe o que fazer com os dias. Não sabe o que fazer com o grito que sobe pela garganta e sai molhado pelos olhos. Não é necessário que mencione o vazio. A casa toda imerge no vazio. Não é só o quarto com a colcha azul que guarda os espaços que nunca mais serão preenchidos. As tábuas de madeira, gastas, que revestem quase toda a residência, se fecham. É como se o tempo tivesse parado. O chão nunca mais será tocado por passos apressados de crianças, por pulos seguidos de gritos finos e alegres. O sofá vermelho, pequeno e antigo, não sentirá o calor de mãos sujas de chocolate. Nem receberá manchas.
Nos primeiros meses de 2013, Aparecida percorreu as ruas com uma foto do filho de 19 anos. As mãos mostravam para os desconhecidos aquele menino que não saiu do seu corpo, mas do seu coração. Os lábios, molhados pelas lágrimas que escorriam dos olhos aflitos, contavam que ele não deixou a boate Kiss naquele 27 de janeiro. Errou o caminho e acabou no banheiro, junto à pilha de corpos que sairiam dali para o caixão. E o que faria ela. O que faria ela que sempre desejara ser mãe? Que nunca pudera ter filhos? Que adotara o menino e que agora havia ficado sem o único filho. E sem o sonho de ser avó.
A ausência se espalha por cada cômodo da casa. Está nos brinquedos guardados para os netos que não vão nascer.  Está no telefone que não vai tocar. Está nos cadernos da universidade que não serão mais folheados. Está na guitarra recém comprada que não produzirá melodia alguma, exceto a de completo silêncio. Está no almoço que não é mais preparado, porque já não há mais quem o coma.
Maria Aparecida não percorre mais as ruas para mostrar o rosto do filho aos desconhecidos. Mas dentro da própria casa, ainda procura os objetos de Augusto. Conta a história de cada um, automaticamente, sem que seja questionada. Remexe nas fotos - já amassadas de tanto serem pegas com as mãos úmidas de pranto. Anda de um canto a outro, as palavras jorrando do peito, as lembranças apertando o coração - que ainda comporta uma dor que não cabe direito ali, que não cabe, de fato, em lugar algum. Mas quando sai de casa, os traços do rosto se alteram. É como se ela mesma desenhasse uma outra Maria Aparecida. Esta, menos frágil, a voz mais firme, os olhos menos úmidos, o andar mais duro e pesado. Uma Maria Aparecida que sai em busca de justiça, mesmo que não saiba direito em que lugar da cidade encontrá-la. 
Os traços alterados delineiam uma mulher que parece mais forte, mas que de forte só guarda a saudade e a única certeza que tem: ainda é mãe. Sempre será mãe. Apesar de. Ainda que. Mesmo que. Nunca deixará de ser mãe. Uma mãe que carrega a perda do único filho, mas que carrega também a perda da continuidade da própria geração. 

Maria Aparecida tem nome de Santa. A cidade também. Mas de puro, em Santa Maria, só existe a dor, que há um ano ocupa as casas, as ruas e os rostos. 

Foto: Carlos Macedo

sábado, 25 de janeiro de 2014

Vida, que você seja mais ida e menos volta.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

O que sobra é uma vertigem doce
Os olhos doídos de sono
E outro coração partido

O que sobra é mais uma noite insone
Garrafas de cervejas esvaziadas
E outro choro estancado

O que sobra é uma loucura passageira
A fala do que não tem mais volta
E outra saudade renunciada

O que sobra nunca é sobra
É cheio

A vida crônica

Capítulo 1 

- São Pedro pagou as contas – ele disse quando uma rajada de vento atingiu a árvore mais próxima e fez a sua camiseta balançar. Ergueu as mãos para o alto e arrancou o tecido de algodão gasto que cobria a sua barriga branca. Ficou somente com o copo de cerveja na mão.
Contemplei o céu e aquela dança de um homem de 50 anos no meio de uma calçada de Porto Alegre, no meio de um bar que eu nunca tinha ido, mas já sabia: aquele era o bar. O bar que eu não havia achado nos últimos 15 meses, mas que naquele final de tarde se apresentou para mim como um lugar de chuva, de vento e de cerveja barata. 
Era o dia mais quente do ano. Eu não dormia há três noites. Na última madrugada, havia colocado toalhas molhadas na cama. Nem assim consegui dormir em paz. E a única solução encontrada era beber até ficar bêbada o bastante para não sentir as ondas de calor invadindo a pele. 
Chamava-se estrela. Talvez com letra maiúscula. Não sei. Não havia letreiro no bar. Demoramos quase cinco minutos para pedir a primeira cerveja. Saíram cinco homens do fundo da loja, enfileirados. Por fim, o dono. Aspirei fundo o ar do bar, que mais era um mercado. Não havia cheiro de erva. A garrafa veio quase branca. E o líquido desceu refrescando. Em seguida o vento, os agradecimentos ao São Pedro, e as folhas voando rápidas e altas, uma cena tão linda que merecia ser filmada. 
Choveu pouco. O insuficiente para cobrir a calçada, mas o suficiente para cobrir meus olhos. Assim como os homens já de cabelos brancos, olhei para o céu quase negro e em seguida contraí as pálpebras. Também quis sentir o que vinha com a chuva. 
E veio paz, mais três ou quatro litros de cerveja, mais uma nuvem carregada de água e, por fim, o vento. Que substituiu o pôr do sol. E o bar novo. Agora, sim. Um bar digno. Um bar. Cervejas geladas. Um grito de alívio. A duas quadras de casa. No meio da rua, mas longe do mundo. Na borda do mundo. Coloco o pé para dentro e estou à mercê. Sempre estarei à mercê do mundo.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

O peito se enche e se cala 
Os olhos transbordam 
Os lábios de fecham 

As unhas roídas 
é o que menos dói 
A pele ferida 
é o que menos corrói 

A maldade vem de fora 
e procura uma fresta 
 A maldade se acomoda 
e acaba com a festa 

Ó, como me atinge 
Isso que não tem face 
Ó, como restringe 
O que está dentro e quer sair

Querida Natasha,

já não sinto mais vontade de nada. Acho que foi o assalto, em setembro. Ou o câncer do meu vô. A última vontade que tive foi a de matar os assaltantes. Depois disso, nada. É como se eu flutuasse em um enorme vazio. Não vejo o seu fim. Nem o começo. Estou exatamente no meio. Às vezes movo a mão para pegar uma cerveja na geladeira. Raramente os lábios. Prefiro não falar. Quando falo, ninguém entende o que digo. Nem eu mesma. Nunca digo o que penso ou sinto. Minha boca me trai. Prefiro digitar. Uma tecla depois da outra. Minhas mãos nunca erram. Nem mesmo depois de algumas cervejas. Sou capaz de escrever sem parar quando bebo. Também não entendo as pessoas. Elas movem os lábios e tudo o que escuto é 'blábláblá'. Gostaria de entendê-las. Sofro com isso. Faço uma força absurda para compreendê-las. Minha cabeça chega a doer. Mas tudo volta ao princípio: nada. 
Foi um começo de ano estranho. E acho que o ano todo será assim. De repente alguém me disse para ir embora. E eu nunca tinha pensado seriamente nessa possibilidade. Agora penso. Penso em ir embora. Mais do que isso: penso em sempre ir embora, nunca ficar em um lugar, nunca me relacionar com as mesmas pessoas. Decidi que agora sei que sempre vou sofrer por não entender. E que a única solução é sempre ir embora. Não como se eu estivesse fugindo, mas para evitar os desgastes de mim mesma. E o desgaste dos outros. Ele disse que tudo bem sempre ir embora. Também me disse que quer ser nada. Não lhe disse que seremos felizes sendo nada juntos. Mas ele sabe disso. 
Tudo o que preciso é escrever meu trabalho de conclusão da faculdade. E aprender inglês. E terminar o livro do Miller. Estou fazendo isso. Me convenço de que estou fazendo isso, mas não estou. Tudo bem, minto para mim. Não há problema algum nisso. Desde que seja só para mim. Ninguém vê nos meus olhos que minto para mim. Nem eu. Mas vejo que eles estão diferentes. Mais fechados. Como se sentissem dor. Não sentem. Eles sentem o nada. Eles enxergam o nada. 

Como você está? Faz tempo que não me escreve. Tenho te escrito cartas mentais. As palavras se ajeitam melhor na mente do que aqui.

Com amor,
T.
Hoje você acordou de ressaca e voltou a dormir 
Pensei em fazer a mala 
Pensei 'preciso sair dessa cidade' 
Não fiz a mala e fui trabalhar 
Sempre quero sair dessa cidade 
Mas logo depois de sair preciso voltar 
A loucura de lá é pior do que a daqui 

Raramente acordo de ressaca 
Mas quando acordo... esses são os piores dias 
A cabeça lateja, o peito sufoca 
E toda a melancolia do ano se acumula nos olhos 
Penso no que deveria ter feito e não fiz 
Penso no que fiz e que deveria ter evitado 

Mas hoje eu não acordei de ressaca 
Olhei pro sol do começo da manhã 
Lembrei que não escrevo há semanas 
E as páginas não escritas me incomodam 
Pensei nos e-mails que não respondi 
E nos planos das férias que não realizei 

Entrei no trabalho e esqueci tudo 
Só lembrei dos últimos R$ 100 do mês 
Que devem durar por mais 20 dias 
E não vão durar

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Diga-me o que bebes e eu te direi o que sentes.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Carta não enviada X

Hoje você voltou. Ou foi ontem. Talvez no mês passado. Não me lembro bem. Você voltou e não entrou pela porta da frente. Há muito que não há paredes na casa. Todas as estruturas foram levadas ao chão. Não dramaticamente, como se esperaria. Ou como eu poderia ter feito ser. Mas como algo que vai se deteriorando com o tempo. Aos poucos sumiu a tinta, as janelas ficaram sem as venezianas. Logo os meninos da rua jogaram pedras nos vidros. Então não vi mais a sucessão dos danos. Não interessei-me em anotar as perdas. No fim, restou esse vazio, essa falta de proteção. Que, ouso dizer, tanto me fez bem. Porque eu achava que ausência de teto era liberdade. Que o ar entraria sem receio. Que a agonia poderia passar. Que respiraria. 

Enfim, não há fim. 

No último ano, eu poderia ter concluído o único conto que minha sanidade foi capaz de escrever. Um conto ditado por mim para mim durante a noite. Um conto que deixei para o outro dia. E novamente para o outro dia. Para o outro mês. E, de repente, não me importei de deixar para o ano seguinte. Eis que. Digo eis que, mas não consigo concluir a frase. Iria se chamar "Um ensaio sobre a loucura". Sei que provavelmente existem outros contos ou livros com esse nome. Mas o meu seria mais puro. Teria saído de um fundo que descobri. E que agora cubro com a capa de chuva.
Não serei mais capaz de continuar a escrever. Porque você voltou. E não bateu na porta dessa vez, justamente porque não havia porta. E eu que achei que a ausência de porta era boa. Que poderia voltar a preencher os espaços vazios com outros retratos. Com outros rostos. Com outras frases de novos poemas. Não sou pessimista, embora essa junção de frases possa sugerir. É que já não sei mais o que esperar. E o erro todo está na espera. Treinei-me para não esperar. E agora sou obrigada a criar expectativas, porque não encontro outra maneira de te receber.
Chove, sim. Uma chuva tão fininha que, a princípio, não me faz abrir a boca pra reclamar. Mas não é como uma chuva de verão. É uma chuva que não traz alívio. Não sei ainda o que ela traz.

Tento secar a casa com os panos molhados e canto uma canção.


quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

No olho do furacão

No dia 27 vai fazer um ano que comecei a dormir mal. Foi o primeiro dia de uma semana de pesadelos. Tem gente que não dorme bem até hoje. Ando por essas ruas que nunca andei e a certeza se dissolve no peito como cera de vela. Depois seca. Tenho certeza de que tem gente que sequer dorme. A cera sufoca o peito. Quase a mente. Deixa os olhos marejados, mas eles nunca despejam para fora qualquer líquido. Tudo volta para dentro de mim. E para dentro estou. Vou recolhendo os cacos que as pessoas colocam para fora. Elas só guardam cacos. Não sinto vontade de gritar. De falar. Sou ouvidos. 

Santa Mar Ia.
Sempre ia. Nunca mais foi.

Ela também tem nome de Santa. O chinelo bate no calcanhar quando anda no piso quente, até o ponto do ônibus. Queria ter netos. Perdeu o único filho. Agora só tem vazio. Dentro da casa e dentro do peito. E os brinquedos guardados em caixas no quarto que nunca foi quarto.

Santa M Ar Ia sem ar. Só dor.