quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Querida Lissa, 
estou, talvez, no último copo de cerveja. Olho pela janela aberta, que me revela uma noite de verão. Saí extasiada do trabalho, hoje. Extasiada pela vida, mas também pela possibilidade de ver o sol até mais tarde. Antigamente, eu detestaria essa possibilidade. Atualmente, tanto faz. Mas hoje me fez bem. Pensei que fosse sexta-feira e optei pela cerveja – como se eu bebesse apenas nas sextas!. Agora vejo a noite correr e reabro contos antigos e inacabados. Todos são lindos. Penso quem eu era quando os escrevi. Já me esqueci. Parece que existe somente esse presente, essa realidade, esse eu. 
Gostaria de ter meses somente dedicados à escrita. Acordar e dormir com esse único propósito. Colocar no papel tudo o que está acumulado na garganta – e no peito. Pela primeira vez, gostaria de ver tudo isso em um livro, não um livro que fosse lido por outras pessoas, mas um livro que fosse lido por mim. Gostaria de poder publicar para mim todos esses eu's para que eu nunca esqueça tudo o que senti – não o que vivi. 
Tenho tanto para te escrever que não consigo colocar aqui. As palavras se atropelam na minha mente. Não há um grau de importância, compreende? Estou feliz. Estou feliz porque há cerveja no copo, ainda que pouca. Estou feliz porque sim. De repente tudo se resume a essa frase: porque sim. 
De repente percebo que toda aquela agonia que eu tinha sobre querer me libertar, querer ser mais comunicativa, matar a minha timidez... tudo aquilo se esvai. Aceito que mudei, que não voltarei mais a ser quem eu era, que automaticamente me excluo e fujo, mas que isso é da minha própria natureza – a natureza de agora. Aceito, enfim, isto que tanto me atormentava. E tenho vontade de dançar quando volto caminhando pra casa. Meu Deus, mas quanto sofrimento até chegar a isso! 
Penso na nossa metáfora sobre barcos. Não estou me afogando. Acho que desamarrei a corda presa ao porto. Deixei que o barco seguisse a correnteza. E não me importo com as futuras tempestades. É estranho porque, apesar de todas as nossas conexões, sinto que essa é a mais forte. Tudo o que falo em primeira pessoa poderia ser sobre você.

Com amor,
M. Batata

terça-feira, 21 de outubro de 2014

A volta

Pela primeira vez em meses sinto-a se arrastar em mim. Vai com cautela até o centro do peito. Leio textos antigos e aspiro-a com força. Está em mim. Está em mim como um comodismo incômodo, como uma falta de ar depois de um mergulho, como o último gole de uma boa garrafa de vinho. Deito, mas não consigo dormir na escuridão. Acendo a luz, mas não consigo dormir na claridade. Ouço os carros passando e os ruídos tornam-se insuportáveis. Coloco protetores nas orelhas e mergulho no completo silêncio, mas minha mente continua cheia. Escreve cartas sem parar. Não quer se desligar do dia para encarar o sono da noite. Se não for insônia, será pesadelo. Minha mente inventa uma melodia. Meus pés se movem nos lençóis vermelhos e limpos  ensaiam um passo de balé. Crio diálogos em pensamentos, mas falo-os em voz alta. Te conto detalhes daquilo que nem havia percebido em mim mesma. Noto que os pés, apesar dos movimentos, estão gelados. Minhas mãos roçam o peito quente, onde a loucura continua a se arrastar. Ela faz tudo ser incoerente de novo. E deixo o futuro de lado para mergulhar completamente no presente, essas certezas cheias de reticências embrulhadas em um papel branco de seda. 

Pela primeira vez em meses não sinto a veia romper. Também não sinto frio ou calor. Nem raiva ou solidão. Ao mesmo tempo, não é apatia. Sinto-me muito viva, mas o nervosismo consome as unhas das mãos. É essa a loucura. Tira-me do equilíbrio, da rotina acertada, das atividades programadas. Tira-me a força, a noção, a felicidade e a tristeza. Deixa-me acesa. Tira-me o sono. Dá-me o suspiro profundo; não de dor, mas de alívio. Dá-me esse alívio bajulado, inventado. E dá-me mais cicatrizes no peito também, que eu sentirei somente após a sua partida. Mas por enquanto não há partidas ou despedidas. A casa se enche e se esvazia a todo instante. Não há monotonia. Nem preocupações. Inquieta por esperar um sono que não chega, levanto e visto a roupa de balé. Danço até cansar no meio do quarto, de frente para o espelho retangular. Danço até que meus pés entrem em um processo de rejeição. As cãibras me fazem parar. E o nascer do sol, após uma noite sem sono, enche os olhos ardidos e cobre o corpo exausto. Já é dia outra vez e estou ainda mais embebida pela loucura do que na noite anterior. O café queima a língua e rasga a garganta seca. Todos os músculos do corpo doem. Penso ter sonhado que dançava balé no centro do quarto.

Já não faz mais diferença se é realidade ou sonho. As projeções se unem aos acontecimentos, formando uma massa viscosa, mas leve. A mente não arquiva em formatos. Tampouco entende o que foi passado  e o que foi criado no passado. Guarda e revive as lembranças restritas aos sentimentos. Exclui completamente os fatos, o tempo, as circunstâncias. E, no caos absoluto, a loucura faz um ínfimo corte para plantar a consternação. Não esta consternação que é desmembrada nos dicionários. A consternação da loucura faz jus ao terna, que está exatamente no meio da palavra. E nascerá também no meio do peito.  Já não faz mais diferença se faz diferença, se repete ou se termina sem um ponto final

"— Cuidado  disse Hugo  para não ficar presa a suas próprias imaginações. Você instila centelhas em outros, carrega-os com suas ilusões e, quando eles explodem em luzes, você fica presa." Anaïs Nin

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Nota de sexta à noite

Os raios irrompem no céu e interrompem o choro do bebê, na casa ao lado. Olho pela janela e a chuva me mostra que todas os quartos do hospital estão com as luzes acesas. Os doentes não conseguem dormir na escuridão. Alguns nem dor sentem, por causa da morfina. Penso na palavra, tão bonita. Me lembra heroína. Me lembra amor. Um amor de herói. Um amor que dilui a dor no sangue. O céu se colore e dilui também meus pensamentos. Primeiro fica azul veludo, depois roxo, depois preto. Desvio os olhos do hospital e vejo um mendigo manco na esquina. Não basta ser mendigo. Tem quer manco e estar na chuva. Ele para e espera o sinal abrir. Não tem lugar para dormir essa noite. Não teve ontem. Talvez terá amanhã. O amanhã é sempre uma possibilidade. Não que o hoje deixe de ser. Mas o hoje está terminando. Escorre pelos dedos. Só não quebra quando cai ao chão porque é resistente demais. Só não quebra porque amanhã precisa se tornar passado.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Maria não vai



Bebe um café. Depois bebe outro. Pensa em cigarros. Não, está velha demais para isso. Espia pela janela os carros passando na avenida. Lembra que não dorme direito há cinco noites. A insônia se transforma em lágrimas de nervosismo, mas elas não caem para umedecer o rosto seco. 

- Aí está o dia. Outro dia.
Murmura para si mesma.

E pensar no dia é como cutucar uma ferida na pele, uma ferida que não cicatriza. É necessário que dona Maria liste tudo o que precisa ser feito: limpar o banheiro, comprar pão, tirar o lixo, arrumar as roupas por cores, fazer a cama, cozinhar feijão, estender as roupas brancas, assistir a novela das seis, fazer mais um bule pequeno de café, colocar o pão na torradeira, assistir Jornal Nacional, pensar em quem vai votar no segundo turno.

Se não fossem as listas, Dona Maria estaria perdida. Mais perdida do que está, assim, cinco noites quase sem dormir. E se dorme, sonha que está sempre atrasada. Mas atrasada para quê? Para a vida que esqueceu de viver. Dona Maria não pensa nisso. Faz listas pra não pensar. Proferir mentalmente que esqueceu de viver é aceitar a solidão que ocupa o apartamento pequeno na zona norte. E aceitar a solidão é prolongar a insônia. Um ciclo. 

O presente de dona Maria está em constante repeat. Às vezes a melodia muda por alguns segundos, quando encontra sem querer, pelo corredor, um dos vizinhos idosos. Eles sempre perguntam se vai chover. Se chove, perguntam se vai fazer sol. Dona Maria murmura qualquer coisa. Está desacostumada a manter uma conversa. Prefere não encarar olhares, apertar mãos enrugadas, mostrar os dentes amarelados. Prefere tentar manter um passado de pele de pêssego, dentes de leite e olhos ansiosos. Mas dona Maria esquece que esse passado quase não existe mais. Foi engolido pelo presente, sempre em constante repeat

No chá das cinco, se dá ao luxo de comer geleia de amora. Lembra da avó. Lembra das panelas grandes e do cheiro da sua fruta preferida impregnado em toda casa. Lembra da casa, do sol entrando pela vidraça, dos sapatos brancos, do pão caseiro, do limoeiro, do som da carroça passando na estrada embarrada. Uma das únicas memórias que ainda se mantém. A música do rádio irrompe o pensamento. 

Vida, minha vida. Olha o que é que eu fiz. Deixei a fatia mais doce da vida. Na mesa dos homens, de vida vazia...

Desliga o rádio. Limpa a mesa. Não quer ter certeza de que divide com a solidão o espaço oco de um futuro que não vai existir. Liga a televisão. Logo começa a novela. Outras vidas pra ocupar a vida que dona Maria não teve.

sábado, 4 de outubro de 2014

Notes from the couch XXXIII

Eu acho que sim, que era você, que sempre foi você, que sempre vai ser. Mas que não sou mais eu. Que já passou do pôr do sol. E você ainda está no dia. E eu estou na noite. Claro, gostaria de estar no dia também. E há isso que nos separa, agora. Não sei até quando. Não sei se vai passar. Se eu passo e você fica. Se você me alcança. Se você vem pra noite, meu bem. Não sei. Há muito que parei de cansar. Que parei de achar. Olho pra um ponto que não existe. Você não acha que seja ponto, que seja vírgula. Você não acha qualquer coisa. Danço na ponta dos pés e faço um pedido. Você diz que estou velha demais para ser bailarina. Peço não querer. Quase acredito em Deus. Acredito, de repente, em tudo. Menos no futuro que já está em dezembro, e me pega pelo tornozelo. Não grito. Não sorrio. Não digo. Quero não pensar também.