terça-feira, 21 de outubro de 2014

A volta

Pela primeira vez em meses sinto-a se arrastar em mim. Vai com cautela até o centro do peito. Leio textos antigos e aspiro-a com força. Está em mim. Está em mim como um comodismo incômodo, como uma falta de ar depois de um mergulho, como o último gole de uma boa garrafa de vinho. Deito, mas não consigo dormir na escuridão. Acendo a luz, mas não consigo dormir na claridade. Ouço os carros passando e os ruídos tornam-se insuportáveis. Coloco protetores nas orelhas e mergulho no completo silêncio, mas minha mente continua cheia. Escreve cartas sem parar. Não quer se desligar do dia para encarar o sono da noite. Se não for insônia, será pesadelo. Minha mente inventa uma melodia. Meus pés se movem nos lençóis vermelhos e limpos  ensaiam um passo de balé. Crio diálogos em pensamentos, mas falo-os em voz alta. Te conto detalhes daquilo que nem havia percebido em mim mesma. Noto que os pés, apesar dos movimentos, estão gelados. Minhas mãos roçam o peito quente, onde a loucura continua a se arrastar. Ela faz tudo ser incoerente de novo. E deixo o futuro de lado para mergulhar completamente no presente, essas certezas cheias de reticências embrulhadas em um papel branco de seda. 

Pela primeira vez em meses não sinto a veia romper. Também não sinto frio ou calor. Nem raiva ou solidão. Ao mesmo tempo, não é apatia. Sinto-me muito viva, mas o nervosismo consome as unhas das mãos. É essa a loucura. Tira-me do equilíbrio, da rotina acertada, das atividades programadas. Tira-me a força, a noção, a felicidade e a tristeza. Deixa-me acesa. Tira-me o sono. Dá-me o suspiro profundo; não de dor, mas de alívio. Dá-me esse alívio bajulado, inventado. E dá-me mais cicatrizes no peito também, que eu sentirei somente após a sua partida. Mas por enquanto não há partidas ou despedidas. A casa se enche e se esvazia a todo instante. Não há monotonia. Nem preocupações. Inquieta por esperar um sono que não chega, levanto e visto a roupa de balé. Danço até cansar no meio do quarto, de frente para o espelho retangular. Danço até que meus pés entrem em um processo de rejeição. As cãibras me fazem parar. E o nascer do sol, após uma noite sem sono, enche os olhos ardidos e cobre o corpo exausto. Já é dia outra vez e estou ainda mais embebida pela loucura do que na noite anterior. O café queima a língua e rasga a garganta seca. Todos os músculos do corpo doem. Penso ter sonhado que dançava balé no centro do quarto.

Já não faz mais diferença se é realidade ou sonho. As projeções se unem aos acontecimentos, formando uma massa viscosa, mas leve. A mente não arquiva em formatos. Tampouco entende o que foi passado  e o que foi criado no passado. Guarda e revive as lembranças restritas aos sentimentos. Exclui completamente os fatos, o tempo, as circunstâncias. E, no caos absoluto, a loucura faz um ínfimo corte para plantar a consternação. Não esta consternação que é desmembrada nos dicionários. A consternação da loucura faz jus ao terna, que está exatamente no meio da palavra. E nascerá também no meio do peito.  Já não faz mais diferença se faz diferença, se repete ou se termina sem um ponto final

"— Cuidado  disse Hugo  para não ficar presa a suas próprias imaginações. Você instila centelhas em outros, carrega-os com suas ilusões e, quando eles explodem em luzes, você fica presa." Anaïs Nin