terça-feira, 29 de novembro de 2011

-Qual o seu nome mesmo?
-Thaís - eu disse. Era a segunda vez que eu o ouvia. Sabia que ele gostava de conversar.
-Hm, Thaís, - ele disse pensativo - sabia que existe uma ópera com o teu nome?
-Não.
-É do Massenet. Nunca a ouvi inteira, apenas trechos, mas achei bonita.
-Vou tentar procurar depois. Gosto de música clássica.
-Ah, é? - ele me olhou surpreso, os olhos claros tentando esconder a pele enrugada. Pelo menos cinquenta anos de diferença entre nós. Pensou que talvez eu não fosse tão estúpida quanto parecia.
-Sim.
-Do que você gosta?
-Beethoven, Bach, Arvo Part...
-Nunca ouvi Arvo Part.
-É russo -eu menti, achando que era verdade. Agora que descubro: russo era o maestro que regeu o concerto de julho. Part é da Estônia. Ou era, ao menos.
-Tchaikovsky. Ele é bom também- e olhou pela janela. O sol ia descendo, mas continuava quente. Pediu se eu preferia a janela fechada.
-Tanto faz - dei de ombros. O calor já estava impregnado nas minhas veias, no brilho opaco dos olhos, na testa quente, nas palavras pela metade. Ele parecia não se importar.
-Bem, mas vamos voltar ao assunto anterior. O que era mesmo?

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Te vejo na fila do trem.
Não vejo nada.
Não vejo ninguém.

Prosa do cansaço

Talvez fossem as cores, todas misturadas, sem matéria alguma, um odor inexistente anestesiando as feridas abertas. Existe coisa pior do que agir e não ter consciência da ordem dos fatos? Há um vinho na geladeira. Esse é de vidro, rótulo bem trabalhado, rolha, suando. Esse vinho não fala, sequer me olha. E ficará lá enquanto houver mais desistência do que sobrevivência. Talvez fossem as cores, menino. A loucura sã é tão perigosa quanto qualquer vertente de maldade pura. Prefiro beber da lucidez falsa, continuar inventando que não preciso de motivos, que o alívio está no que não deve ser explicado, no nulo, no que pende na beira do abismo, não na tentativa de suicídio, mas de tanto faz. Há qualquer substância líquida, que não o sangue, que corre no peito, e anestesia a perna direita e depois, no final da tarde, sai depressa pelos olhos. Precisa morrer antes que o dia. Precisa morrer.
Pois veja bem, vou fazer o que há muito tempo não faço: tentar falar. E espero que essa tentativa não morra como um soluço, a espessura áspera de uma palavra engolida erroneamente. Entende quando eu digo que talvez fossem as cores, que talvez foram as cores que ofuscaram as certezas? Entende quando digo que o vinho reprime a angústia? Ela tenta escapar pelas mãos, que fazem movimentos contínuos, ferindo o couro cabeludo, as cutículas mal feitas, os arranhões no pulso, no rosto e na barriga. Além de reprimir, acorda a melancolia que é tão masoquista e reclama por ter de abrir os olhos e perceber que ainda há vida, mesmo que quase abortada antes do fim. Dizem que isso é crime. Como pode ser crime escolher a liberdade? Mas, na verdade, o que eu quero te falar é que essa tentativa é porque talvez tivessem sido as cores. Ou a falta delas. Ou a invenção que tento associar com a profundidade de alguma superfície.
Antigamente você sorria quando eu ficava falando, o cigarro queimando na mão, queimando a mão, até eu enfim notar que havia outro mundo além do meu, e pior: eu vivia nesse mundo. Sei bem que esconder isso não vai mudar o grito rouco, a música falhada, o papel amassado branco, guardando um vazio doce que não pode ser. Não pode ser, simplesmente. A dor de cabeça começa no dedinho do pé que é torto. Quando penso que antes eu conseguia falar sem ter dor de cabeça, outra coisa se quebra dentro de mim. Outra coisa que me impede mais ainda de falar. Mas vou continuar tentando. É que antes a vodca me fazia articular tão bem que qualquer má pronúncia me deixava aterrorizada. Hoje a vodca só me faz vomitar. Você vai me dizer que é melhor mesmo que eu tire tudo de dentro de mim, de um jeito brusco, sentindo o brusco dar lugar ao nada, o que sempre quis. Acontece que o que fica em mim é cada vez mais desnecessário, e não essencial e verdadeiro, como disse Abreu. Enlouquece, mesmo que eu nunca venha a saber disso.
Talvez fossem as cores. Talvez foram as cores que deram lugar àquele raio, naquele almoço, naquele restaurante caro, um peixe ao molho rose, boêmia e bala de goma. Foi nesse dia que eu pensei "bem, vou continuar". E quando pensei em continuar, parei de falar, e parar de falar talvez tenha sido o que mais me surpreendeu, logo eu que jamais podia controlar o jorro de frases sem pontos, sempre com reticências. E foi depois disso que me demiti, retirei Thoreau da prateleira, amassado e cheio de pó, e saí na chuva de agosto, quase de setembro. Logo na esquina de casa, o livro molhando, setembro surgiu, não como o dia quando nasce ou quando morre. Foi sem beleza alguma. Nasceu de um remorso, precocemente, porque já não suportávamos agosto, os rostos pintados pela metade em muros de becos sem saída. Estávamos distorcidos em toca-discos que já não tocavam, em latas de ervilha vencidas e em camas sem sobre lençol. E ainda estamos distorcidos, mas isso é apenas um detalhe.
Talvez fossem as cores. Talvez foram as cores que fizeram com que nossos olhos se fechassem. Não apenas queríamos que agosto terminasse, mas logo nos demos conta de que já não aguentávamos setembro, outubro e, por fim, o calor de novembro, amarrotando o vestido cinza, cheiro de novo, em cima de um corpo que deveria estar nu. Eu te disse que já não podia mais falar ou ouvir, que a chuva molhando Thoreau entrava pela minha boca e enxugava o que ainda existia de real dentro de mim. Te disse um tanto seca que meus dedos tocavam as teclas de um computador vazio e que não era mais possível criar o que devia ser calado. Tudo isso porque decidi continuar. Agora estamos distorcidos, esperando com que novembro morra rapidamente, que dezembro não seja vivido e que o ano, bastardo, termine com um suspiro, sem champagne, lá naquele morro que começa com uma estrada de chão, íngreme demais para nos equilibrarmos em dois, três ou quatro pares de pernas. Talvez você me diga, com um pouco de medo, que não quer aquela loucura que vem do mar. E que a minha tentativa de falar é cada vez mais abafada pelo silêncio desse repertório avulso. Talvez fossem as cores.

"(...) saberia sempre da sua própria farsa. Tão conscientemente falsa que sua inverdade era o que de mais real havia, e isso nem sequer era um jogo de palavras. A grande mentira que ele era, era verdade. Ou: a mentira nele nunca fora fraude, mas essência." Abreu

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

O tal de mendigo

Ele disse que a verdade não existe, que é tão simples, é só encontrar alguém que te dê pouso, um prato de comida, um sorriso. Mas que tem sido difícil lidar com a maioria das pessoas, que as piadas são certeiras e que ele não denuncia ninguém, ninguém, mesmo aquele que colocou fogo em seu cabelo um dia. Isso ele não disse, mas eu sei. Depois ele me mostra as mãos, limpas, brancas, a pele muito fina, e me diz que são tão sensíveis, tão, que quando fala isso, olha para o lado para não chorar. É única vez que ele sinaliza uma outra emoção que não a completa apatia. Tão lúcido na sua própria loucura que não consigo dormir naquela noite, somando dois malditos sonos adiados.
Sequer álcool na sua boca, no estômago, deteriorando o fígado. Sequer um cigarro queimando nas mãos. Nada. Nada de vício, exceto a mania de nunca ter casa, nunca ter mulher, nunca ter dinheiro. Os olhos azuis arregalados, não como se estivessem com medo ou anunciando a dor que se transforma em temporal dentro dele ou sinalizando perigo para o mundo. Os olhos azuis arregalados tentando entender se as ruas são mesmo assim, todas cheias de pó, de correria das pessoas, de atrasos, do relógio que corre mais do que o tempo, da poluição que sai do cano dos carros e mancha o céu claro. Mas há dentro dele pensamentos que não o deixam dormir, que faz com ele caminhe o dia todo de um lado para o outro, pegando ônibus intermunicipal, a cabeça baixa, nunca sentando em banco algum, nem para comer.
Sempre de pé, o chinelo gasto nos pés, a roupa que nunca é trocada, apesar dos banhos constantes. Sempre de pé, a certeza de que existe um Deus brotando todo dia do fundo do peito, saindo em frases lentas pela fresta da boca, onde pendem três dentes sujos. É incoerência que canta com voz desafinada. A sujeira do mundo incomodando, mesmo que não note. E a sujeira do seu corpo sendo considerada limpa perto de toda a confusão das pessoas. A verdade não existe, ele sussurra. É com a ausência de verdade que ele cria a própria realidade, mais amena do que a de todos os outros, mais humana, mais digna e mais humilde. Mas a solidão dói, ele me diz. Nada dói mais do que a solidão, principalmente aos 50 anos.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Excessos e ausências
Poesias e reticências

terça-feira, 8 de novembro de 2011

É quase um erro você me acordar a essa hora para dizer que a vitrola automática quebrou. Só não é um erro porque eu não estava dormindo, o que não acontece há duas noites. Bem, o que posso te dizer? A ausência é tanta que nem mais a sinto.

M.B.

sábado, 5 de novembro de 2011

"O vinho está quase no fim. A manhã vem vindo, não sei se conseguirei continuar contando." Abreu

Preciso ouvir música clássica, pensou enquanto se equilibrava em cima do meio fio, no caminho para casa, o sol se pondo, os óculos abafando os raios quentes. Mas no ipod apenas o de sempre: MPB, country e instrumental. Nada de Beethoven. Nada de Arvo Part. Nenhuma melodia no mesmo nível do cansaço.
-Excesso de dor é a anestesia mais eficaz. Não sinto a dor e, entretanto, sei que as feridas são visíveis. Excesso de dor é anestesia porque é loucura. Excesso de dor é melhor do que pouco, do que quase nada de ferimentos.
E como não havia música clássica, continuou se equilibrando em cima do meio fio, os pés dobrados como se estivesse de sapatilha de balé, mas neles apenas o mesmo all star encardido, tão velho que nos dias de chuva a meia de ovelhas se encharcava. Andava no mesmo ritmo e na mesma perfeição de quando tinha quinze anos. Quase se esqueceu do tempo. Quase se esqueceu de si mesma.
-O problema da escassez é o alarde que ela faz, sempre gritando mais do que o próprio tamanho. O problema da escassez é que ela não se aplica à dor. E a dor, que não pode sucumbir depois que nasce, se desalinha do corpo, da mente, dos fatos, quando alguém cita a falta.
Era mais fácil andar no trem, ele que se equilibrava tão bem nos trilhos. Era mais fácil se equilibrar de pé no trem, os joelhos dobrados para que o corpo não se enganasse na primeira freada brusca. Mas entre a segurança e a possibilidade de uma queda, era o masoquismo que confirmava a escolha.
-Só existe capitular no meu texto, pois logo depois encerro com o ponto final. Pulo até a introdução. Pulo do começo ao fim. É mais difícil terminar do que começar, apagar do que escrever. Todos os sentimentos se desenham, agora, nas nuvens que eu não consigo enxergar.
Os óculos pesando no rosto, o rosto quente, quase febril. Uma sacola na mão, cinco livros dentro. Sequer uma linha do que está escrito neles será lida nos próximos dois anos. Não há tempo. Não há vontade. Simplesmente não há qualquer coisa. E os pés, em cima do meio fio, cada vez andando mais rápido, a possibilidade de queda certeira, as mãos raladas já era uma quase realidade.
-Não quero porque sentir me basta. E cheia de sentimento não posso fazer outra coisa a não ser renunciar. Renuncio os começos porque estou cheia de meios que não foram excluídos. Renuncio a escassez porque o excesso me acalma. Só não renuncio a dor que é oportunidade de loucura.
Quase como uma bailarina, era assim que podia ser vista. Mas não sabia. Inventava a própria dança em cima de pedaços de concreto que se ligavam por cimento. Os lábios murmuravam a música clássica que não conseguia ouvir. As mãos digitavam no ar, tão rápidos eram os movimentos que se perdiam no final da tarde.
-Pois já não sou. E esse é todo o peso que eu posso carregar. Não renuncio o peso porque ficar leve me faria uma sacola no vento, sempre caindo e sendo erguida, sempre estufando e sempre reduzida a milímetros. A matéria estável pode não combinar com o abstrato inconstante, mas desequilibra. E existe desequilibro que não encanta?