quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Prosa do cansaço

Talvez fossem as cores, todas misturadas, sem matéria alguma, um odor inexistente anestesiando as feridas abertas. Existe coisa pior do que agir e não ter consciência da ordem dos fatos? Há um vinho na geladeira. Esse é de vidro, rótulo bem trabalhado, rolha, suando. Esse vinho não fala, sequer me olha. E ficará lá enquanto houver mais desistência do que sobrevivência. Talvez fossem as cores, menino. A loucura sã é tão perigosa quanto qualquer vertente de maldade pura. Prefiro beber da lucidez falsa, continuar inventando que não preciso de motivos, que o alívio está no que não deve ser explicado, no nulo, no que pende na beira do abismo, não na tentativa de suicídio, mas de tanto faz. Há qualquer substância líquida, que não o sangue, que corre no peito, e anestesia a perna direita e depois, no final da tarde, sai depressa pelos olhos. Precisa morrer antes que o dia. Precisa morrer.
Pois veja bem, vou fazer o que há muito tempo não faço: tentar falar. E espero que essa tentativa não morra como um soluço, a espessura áspera de uma palavra engolida erroneamente. Entende quando eu digo que talvez fossem as cores, que talvez foram as cores que ofuscaram as certezas? Entende quando digo que o vinho reprime a angústia? Ela tenta escapar pelas mãos, que fazem movimentos contínuos, ferindo o couro cabeludo, as cutículas mal feitas, os arranhões no pulso, no rosto e na barriga. Além de reprimir, acorda a melancolia que é tão masoquista e reclama por ter de abrir os olhos e perceber que ainda há vida, mesmo que quase abortada antes do fim. Dizem que isso é crime. Como pode ser crime escolher a liberdade? Mas, na verdade, o que eu quero te falar é que essa tentativa é porque talvez tivessem sido as cores. Ou a falta delas. Ou a invenção que tento associar com a profundidade de alguma superfície.
Antigamente você sorria quando eu ficava falando, o cigarro queimando na mão, queimando a mão, até eu enfim notar que havia outro mundo além do meu, e pior: eu vivia nesse mundo. Sei bem que esconder isso não vai mudar o grito rouco, a música falhada, o papel amassado branco, guardando um vazio doce que não pode ser. Não pode ser, simplesmente. A dor de cabeça começa no dedinho do pé que é torto. Quando penso que antes eu conseguia falar sem ter dor de cabeça, outra coisa se quebra dentro de mim. Outra coisa que me impede mais ainda de falar. Mas vou continuar tentando. É que antes a vodca me fazia articular tão bem que qualquer má pronúncia me deixava aterrorizada. Hoje a vodca só me faz vomitar. Você vai me dizer que é melhor mesmo que eu tire tudo de dentro de mim, de um jeito brusco, sentindo o brusco dar lugar ao nada, o que sempre quis. Acontece que o que fica em mim é cada vez mais desnecessário, e não essencial e verdadeiro, como disse Abreu. Enlouquece, mesmo que eu nunca venha a saber disso.
Talvez fossem as cores. Talvez foram as cores que deram lugar àquele raio, naquele almoço, naquele restaurante caro, um peixe ao molho rose, boêmia e bala de goma. Foi nesse dia que eu pensei "bem, vou continuar". E quando pensei em continuar, parei de falar, e parar de falar talvez tenha sido o que mais me surpreendeu, logo eu que jamais podia controlar o jorro de frases sem pontos, sempre com reticências. E foi depois disso que me demiti, retirei Thoreau da prateleira, amassado e cheio de pó, e saí na chuva de agosto, quase de setembro. Logo na esquina de casa, o livro molhando, setembro surgiu, não como o dia quando nasce ou quando morre. Foi sem beleza alguma. Nasceu de um remorso, precocemente, porque já não suportávamos agosto, os rostos pintados pela metade em muros de becos sem saída. Estávamos distorcidos em toca-discos que já não tocavam, em latas de ervilha vencidas e em camas sem sobre lençol. E ainda estamos distorcidos, mas isso é apenas um detalhe.
Talvez fossem as cores. Talvez foram as cores que fizeram com que nossos olhos se fechassem. Não apenas queríamos que agosto terminasse, mas logo nos demos conta de que já não aguentávamos setembro, outubro e, por fim, o calor de novembro, amarrotando o vestido cinza, cheiro de novo, em cima de um corpo que deveria estar nu. Eu te disse que já não podia mais falar ou ouvir, que a chuva molhando Thoreau entrava pela minha boca e enxugava o que ainda existia de real dentro de mim. Te disse um tanto seca que meus dedos tocavam as teclas de um computador vazio e que não era mais possível criar o que devia ser calado. Tudo isso porque decidi continuar. Agora estamos distorcidos, esperando com que novembro morra rapidamente, que dezembro não seja vivido e que o ano, bastardo, termine com um suspiro, sem champagne, lá naquele morro que começa com uma estrada de chão, íngreme demais para nos equilibrarmos em dois, três ou quatro pares de pernas. Talvez você me diga, com um pouco de medo, que não quer aquela loucura que vem do mar. E que a minha tentativa de falar é cada vez mais abafada pelo silêncio desse repertório avulso. Talvez fossem as cores.

"(...) saberia sempre da sua própria farsa. Tão conscientemente falsa que sua inverdade era o que de mais real havia, e isso nem sequer era um jogo de palavras. A grande mentira que ele era, era verdade. Ou: a mentira nele nunca fora fraude, mas essência." Abreu