sexta-feira, 11 de novembro de 2011

O tal de mendigo

Ele disse que a verdade não existe, que é tão simples, é só encontrar alguém que te dê pouso, um prato de comida, um sorriso. Mas que tem sido difícil lidar com a maioria das pessoas, que as piadas são certeiras e que ele não denuncia ninguém, ninguém, mesmo aquele que colocou fogo em seu cabelo um dia. Isso ele não disse, mas eu sei. Depois ele me mostra as mãos, limpas, brancas, a pele muito fina, e me diz que são tão sensíveis, tão, que quando fala isso, olha para o lado para não chorar. É única vez que ele sinaliza uma outra emoção que não a completa apatia. Tão lúcido na sua própria loucura que não consigo dormir naquela noite, somando dois malditos sonos adiados.
Sequer álcool na sua boca, no estômago, deteriorando o fígado. Sequer um cigarro queimando nas mãos. Nada. Nada de vício, exceto a mania de nunca ter casa, nunca ter mulher, nunca ter dinheiro. Os olhos azuis arregalados, não como se estivessem com medo ou anunciando a dor que se transforma em temporal dentro dele ou sinalizando perigo para o mundo. Os olhos azuis arregalados tentando entender se as ruas são mesmo assim, todas cheias de pó, de correria das pessoas, de atrasos, do relógio que corre mais do que o tempo, da poluição que sai do cano dos carros e mancha o céu claro. Mas há dentro dele pensamentos que não o deixam dormir, que faz com ele caminhe o dia todo de um lado para o outro, pegando ônibus intermunicipal, a cabeça baixa, nunca sentando em banco algum, nem para comer.
Sempre de pé, o chinelo gasto nos pés, a roupa que nunca é trocada, apesar dos banhos constantes. Sempre de pé, a certeza de que existe um Deus brotando todo dia do fundo do peito, saindo em frases lentas pela fresta da boca, onde pendem três dentes sujos. É incoerência que canta com voz desafinada. A sujeira do mundo incomodando, mesmo que não note. E a sujeira do seu corpo sendo considerada limpa perto de toda a confusão das pessoas. A verdade não existe, ele sussurra. É com a ausência de verdade que ele cria a própria realidade, mais amena do que a de todos os outros, mais humana, mais digna e mais humilde. Mas a solidão dói, ele me diz. Nada dói mais do que a solidão, principalmente aos 50 anos.