quinta-feira, 31 de março de 2011

"Estamos encalhados sobre estas malas e tapetes com nossos vinte anos de amor desperdiçado." Abreu

O único meio de comunicação daqueles dois era a coluna semanal no jornal da cidade. Os olhares se cruzavam, vez ou outra, nas ruas frias e empoeiradas que acabavam no pôr do sol. Nada mais havia para falar. Nada mais era motivo de riso ou lágrimas. Predominava aquela inércia que há tanto tempo tinha sumido da vida deles.
Ambos tinham consciência de que nunca seriam um casal. Eram iguais no que tinham de ser diferentes e eram totalmente opostos nos aspectos que deviam se identificar. O tempo judia da gente, pensava ele, indo para o trabalho, sempre chegando atrasado. Sabia que onde quer que fosse levaria junto as lembranças daquelas finais de tarde que passara com ela. Não sei como eu era antes dessa falta de comunicação, pensava a menina.
No fundo não fazia diferença para eles estarem ou não se falando. Sabiam, porém não queriam admitir, que nunca existiu amor naquelas conversas longas do outono passado. Mas também não tinham certeza do que era aquele sentimento.
E toda a noite, o cachecol pendendo no pescoço dela, aquele mesmo que um dia fora vítima do vômito de vinho. E todo almoço ele lá no parque, o pensamento de que tem de arrumar outra pessoa por quem sofrer.
A música que toca no mp3 do menino não é mais a mesma de um ano atrás, mas ainda faz lembrar de cada traço do rosto dela. Os livros que a menina lê já não são os mesmos do que há um ano, mas toda vez que olha para a obra que fica na cabeceira da cama, amarelada e velha, pensa por que ele não o leu até o final.
-Lembrava muito de ti.

É uma incoerência absurda, acompanhada pela solidão. Ambas nunca vão morrer.

Nem adeus nem até mais marcaram a despedida. Foi brusco. Ainda é.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Deixa esse céu brilhar e a certeza da incerteza pousar no peito.
Deixa a gente respirar e ter um pouco desse brilho nos olhos que todo mundo insiste em roubar.
Deixa essa folha branca partir, voar, ser pisada e amassada.
Deixa essa janela aberta pro canto dos pássaros entrar.
Deixa a geleia de morango em cima da mesa, do lado da lucidez.
Deixa... deixa que o tempo passa e junto com ele as pessoas e os amores e as tristezas.

Deixa, deixa pra mais tarde.
Afinal, o dia insiste em nascer.


quinta-feira, 17 de março de 2011

Olhos borrados demais.
Lábios vermelhos demais.
É tudo sempre em excesso.
Menos a cerveja que logo acaba.
Só restam os pingos quentes.

A lua volta, outra vez. É protagonista de um céu tão azul que intimida as estrelas. E o que a gente faz com essa noite que insiste em viver durante o dia? E estraga os fatos que nunca existiram. E faz os dentes ficarem cerrados, as costas tensas e os pensamentos sempre mais a frente do que podem ser pensados.
Encaixamos as palavras nesse emaranhado de frases desconexas. Novamente levantados nas manhãs quentes, lavamos o rosto com a água cheia de cloro, encaramos as olheiras que vivem naquele reflexo há não sei quanto tempo e desejamos sair intactos dessa situação.
Para onde foi o papel amarelado que era coberto por estórias e sentimentos que nunca morriam? Morreram. Morreram junto com a menina da capa de chuva amarela que se foi com a chuva. Quem diz que as pessoas são substituíveis é um idiota que pode ter razão.

Só mais um final de semana ou dois. A escassez de garrafas de vinho e latas de cerveja. O excesso de todas as outras coisas que não deveriam estar neste quarto.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Inércia também significa vulnerabilidade. Ela abre as portas para todas as coisas consideradas ruins. Deixa a tristeza entrar, afaga a sua cabeça e prepara a cama. Tudo demasiado. Serve o café da manhã pra loucura, arruma o seu cabelo e limpa o quarto. No fundo da metáfora, é um grande hotel caído aos pedaços que mal tem as paredes erguidas e abriga tanta gente e se esforça tão bem para deixar tudo confortável que um dia, ah, um dia...