quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

A minha pequena e bela loucura com capa de super herói. Como se voando para longe, por um ou dois dias, pudesse dar chance para a lucidez se instalar.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Conto fantasma


É aquela cidade pequena. Mas reluta em chamá-la de maldita. Porque as palavras sempre vão parecer mais do que são. É aquele grupo de pessoas, o único, pois não se pode dividir os moradores em ovelhas negras ou pretas. São todas da mesma cor, e não importa qual, uma vez que as características inibem qualquer outra classificação. Sempre pensou ser ela a preta, porque nunca concordou com a maioria. Mas descobriu que raramente a maioria está certa. E que já não faz parte daquela cidade. Nunca fez, afinal. Desde que choveu no natal de 2007. A cada gota fina, a certeza de que jamais saberia o que fazer com aquelas palavras, a não ser colocá-las em uma página cinza com vermelho. E por colocar lá, todo dia, sem faltar um, é que abriu o coração. E abrindo deixou espaço para que pisassem nele com botas pesadas. Para que dele fizessem assoalho de casa abandonada. E depois o abandonaram também. 
Não entendia. Aquele grupo de pessoas sem cor. Porque talvez ela tenha usado palavras como 'maldita'. E nunca foi a ironia, a intenção de superioridade. Apenas a certeza de que estava sendo massacrada. E com palavras tentava se salvar. Mas jamais funcionaria. E depois de não funcionar foi que se fechou dentro de casa, colocou-se dentro da máquina de lavar, ficou um tempo girando de um lado para o outro, e ficou secando por um ano, em um lugar seguro. E só depois de seca pode sair.  Estando limpa, correu para o mar de julho, antes que alguém a visse, e depois correu para outra cidade. Para não voltar.
Correu sem guarda-chuva, sem as roupas de inverno, sem o quadro preferido. Correu com os livros e com os contos e com todos aqueles escritos, desde o natal de 2007, dentro de uma caixa marrom. Correu sem sapatos para o mau tempo, prevendo que encontraria sol. E mar. Encontrou os dois dentro de uma paz que desenha todo o dia na parede branca do quarto, quando acorda, quando vai dormir, quando não consegue dormir, quando bebe demais e fica tendo pesadelos sem começos, mas pesadelos que se findam quando a escuridão do quarto minúsculo é assassinado pela claridade da manhã.
É aquela cidade pequena. Que enche de saudade e de repugnância. Uma nostalgia que não tem rima. Uma analogia não feita. Uma ressaca, mesmo sem ter bebido, que faz a cabeça doer quando chega no pórtico. E olha aquelas ruas que caminhava nos domingos à tarde, quando ainda suportava o calor, quando não importava quantos quilômetros precisasse andar, desde que tivesse uma chegada. Ou uma chuva durante o natal. Mas agora o que importa é o caminho. E a música escolhida na jukebox. E a cerveja mais barata. Fica mesmo é com a cabeça desprotegida, para pegar chuva, para pegar sol. Porque agora não precisa mais ficar na máquina. Tampouco necessita ficar secando em um lugar seguro, durante um ano.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Oração

Por que não aceitá-la? Pergunto-me. Por que pensar que a mato mais um pouquinho quando outro gole de cerveja desce raspando a garganta? Por que me maltratar e maltratá-la, se ambas podemos maltratar o mundo? Por que fingir que talvez ela possa se transformar em uma menina doce, senão na própria lucidez, ao menos em algo parecido, um meio termo? Por que continuar inventando personagens se é a ela - e somente a ela - que quero me referir?
Até quando, pergunto-me, continuarei retendo-a nisso que chamo de armário. E que ele chama de peito. Até quando inventarei nomes, pintarei terceiras pessoas, e ele a chamará de pássaro azul. Se não é azul a cor deste ser. Se nunca foi. Se não há tinta que o faça ser. Até quando ela irá obedecer ao impulso. E eu a uma razão que não sei de onde sai. E até quando continuaremos chocando esses dois extremos, recolhendo os cacos e indo até o mercado da esquina para comprar super bonder. 

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Bastava uns dias a mais, dez cartas a mais, sete vidas a mais. Bastava a geladeira cheia de cerveja, a música no último volume, aquela cadeia de conversas com os mesmos assuntos de sempre. Mas bastava.

O dia em que faltou luz cinco vezes

Da porta para fora a temperatura era duas vezes mais quente e não havia motivo para esperar que a chuva passasse, como as pessoas do trabalho que se espremiam no hall de entrada. Também não havia motivo para abrir o guarda-chuva para se encolher embaixo dele. As barras de sua calça ficariam molhadas e sujas de qualquer forma.
Quis sair na chuva, uma ânsia de correr para qualquer lugar, mas nunca chegar. Ficar correndo e correndo sem se cansar. Deixar que a camisa azul colasse no corpo, que a calça social preta pesasse, que talvez nem o cinto aguentasse o peso do tecido. Não se importar com o celular no bolso, com a carteira, com as roupas que havia esquecido na cerca, em casa.
E, correndo, notou como estava cansado, como havia bebido muito café. Seus olhos ardiam. De sono. De fome. De um sentimento que não encontrava palavra para simplificar. De uma ressaca. Mesmo sem força, os pés continuavam, um na frente do outro, sem jamais tropeçar. Sequer sentia o próprio peso. Sentia apenas uma gota de cada vez caindo no seu rosto grudento pelo calor. E, junto com cada uma, caía também uma quase paz, um quase alívio, uma quase tempestade. Como eram bonitos os tais de temporais. 
Na sua mente, as histórias vinham sem interrupções, rápidas demais para que conseguisse digerir, rápidas demais para que pudesse tomar notas, colocar vírgulas ou pontos, tentar decorar para lembrar em casa. Histórias que não lhe pertenciam, que não eram de ninguém, tampouco. Histórias que nasciam e morriam, que renasciam, costuravam-se umas às outras e depois se debatiam, como se constituíssem um monstro sem face.
Conseguiu se desvincular da própria vida, do próprio mundo, para ver tudo distante. Para ver os dramas reduzidos a frases curtas. Vomitadas. Amassadas. Que escrevia em um caderninho preto. Às vezes apenas engolia. Vendo os fatos distantes, percebeu como o próprio desespero era patético, ele que nunca fora de medir o desespero pelo tamanho do fato. Viu a sua vida como aquelas histórias que inventava. Que não sabia de onde tirava. Mas tirava. 
Sabia que se parasse de correr, tudo aquilo também pararia. E foi por isso que continuou correndo. Foi por nada daquilo fazer sentido que quis que permanecesse, que cuspiu os motivos e os deixou para trás, em uma pedra cinza, suja, molhada pela chuva. Quando pensou no seu próprio nome, estranhou. Quando viu o próprio reflexo na vitrine de uma loja, pensou não saber o que era aquela pele que o revestia, aquela expressão arrasada no rosto, os olhos sem qualquer brilho, sem qualquer reação. Entendeu que já não era aquilo que esculpira lentamente, com cervejas, livros, músicas e cigarros. Que nunca seria qualquer coisa, afinal. Ou que seria a confusão, a mistura de insônia, dualismos, excessos e faltas. Mas que continuaria sendo, de qualquer forma. E era esse verbo o único que restaria, que o arrastaria, que insistiria nessa vida que há muito não pertencia à realidade, de tanto estar mergulhada nela.
Se ao menos pudesse ver sempre tudo de fora. Se pudesse sair de dentro de si, de dentro do que havia criado, de dentro da casca. Se pudesse ficar correndo na chuva. Talvez corresse até ela. E esquecesse que há quatro meses não se falavam. Talvez comprasse uma garrafa de conhaque, como no conto do Caio Fernando Abreu. E fosse. Porque era assim que se sentia: aquela pobre estopa desgastada. Mas já não poderia lidar com uma porta fechada, com ela não atendendo ao telefone. Não poderia lidar com qualquer coisa, e o pior de tudo era ter consciência disto.
Aos poucos os pingos foram ficando finos, até, enfim, pararem de cair. Com a tempestade cessando, ele também parou de correr. A sensação de ver a sua vida de fora foi substituída pela certeza de que estava muito longe de casa. Mas já não sabia se era fisicamente ou mentalmente. E talvez não sabia se isso fazia alguma diferença. Porque depois de pegar um ônibus e chegar em casa, as paredes o engoliriam novamente. Ou ele próprio se encheria de conhaques, runs, cervejas, ressacas, ausências e reticências.

"Eis o que somos, a maioria de nós: prisioneiros de nós mesmos. Dificilmente há uma dúzia de homens, numa geração, capaz de romper o casulo." Henry Miller

- Eu continuo nadando dentro de mim. Lutando para que, outra vez, não me afogue. E nunca alcanço o barco, entende? Toda vez que estou perto, que faço o máximo de esforço esticando o braço, volta a tempestade. Não sei como ainda continuo nadando. Nem sempre faz calor.

Silêncio.

- Vês o meu exagero, não é? Pensas que não sei que faço disto mais do que é? Mas não tenho culpa. Procures compreender. Não tenho qualquer possibilidade de decisão. Sou guiada por essa maré. Ela sempre me leva para o lado errado. Para longe do barco.

- Já pensou que talvez gostes de estar quase sempre afogada? Que precisas dessa melancolia? Que necessitas sofrer, mesmo que digas que não? Sei que não é de propósito. Mas o que posso fazer?

- Faça-me livre. Não posso nadar com alguém que, além de se prender aos meus pés, ainda prende uma série de conceitos. Tampouco posso viver neste mundo que queres, nesse mundo que enches de enfeites, de princípios. Há algo em mim que não suporta isso.

- Queres se ver livre de mim?

-Não. Apenas peço que nades ao meu lado. 

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Eco

A insônia vem vestida de branco, tosse forçadamente para que eu perceba a sua presença. Lava a louça, murmura uma canção nostálgica, faz massagem no meu cabelo, diz que hoje não tem lua, nem ontem, nem há duas ou três semanas. Me serve outro copo de chá gelado, me faz preencher mais uma página da agenda amarela, me imita dançando em cima do tapete preto. É tão delicada que não ouso ficar irritada, que não peço para parar, que não digo que dessa vez ela deve ir embora.
Deixo que pinte os meus olhos de preto, que suje o espelho, que pise com os seus pés sujos no lençol limpo. Que fale e fale e, quando cansar, fale novamente. Que escreva na parede as poesias que eu não escrevo, assim, quase que sem ponto final. Porque ela nunca termina. Nunca termina a estrofe. Nunca se termina em mim. Deixo que me arranque os motivos, mesmo que eu permaneça calada. Deixo que me arranque as possibilidades de pesadelo. Que me arranque as possibilidades de realidade.

domingo, 9 de dezembro de 2012

VII

Vem. Não vai. Não sai. Ou fica enquanto eu saio. Mas não sai enquanto eu fico. Me espera voltar. Compra vinho. E azeitonas. Deixa eu comer 43 delas. E ir até o mar com uma caneca, e ficar com bigodes, e te arrastar pra água gelada, depois da tempestade. Fica. Tomo banho de chuva, se você quiser. Mas fica.
Toda a falta de motivos 
motivando a ausência 
Toda a sobra de ausência 
faltando com a indiferença 
Toda a indiferença 
ausentando os motivos

sábado, 8 de dezembro de 2012

O último dia 6

Existe sempre uma promessa que nasce com a noite e morre com a manhã, que se fantasia de alívio e dança pelas ruas tão facilmente, como se não pesasse, como se seus pés não doessem, como se fosse fácil fechar os olhos e deixar o vento levar.
Outra vez sobrou a falta e faltou a fala. Outra vez o jogo de palavras foi engolido com o calor de dezembro, com a última noite de seis meses que dá lugar para outros seis. Ainda que não tenham começado, já estão carregados de esperança, mesmo que o consciente diga que não. Muda o cenário e as pessoas. As músicas antigas dão lugar ao MPB. Muda a visão da janela e a janela. Os livros novos dão lugar aos velhos. Mudam até as certezas. Mas continua ali, essa promessa que nasce, que morre, que sucumbe ao roteiro.
E de vestido vermelho, a menina segue declamando os seus pensamentos, uma declamação que sussurra qualquer coisa, menos palavras. Uma declamação que não nasce na ponta dos dedos, que não fica no papel, mas que não sai na mente. Gostaria de arrancar um por um os corações pretos do vestido, mas suas mãos estão ocupadas fazendo uma coreografia com o vento, apesar de o vento não existir.


sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

O meu erro é colocar o ponto final no lugar do ponto de exclamação.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Escrevi cinco páginas da agenda amarela que você me deu. Está no dia 19 de novembro. E eu sei, mesmo que você sempre se perca no tempo, que estamos em dezembro. Bebi algumas cervejas e você riu da minha voz mole ao telefone. Procuro os bichos nas paredes brancas do meu apartamento. E se novamente não dormir, colocarei neles a culpa. É mais fácil assim do que ter que admitir que a insônia voltou. Do que te explicar porque é que ando triste, quando nem eu mesma sou capaz de dizer.
Prefiro continuar com a janela do quarto fechada, com a casa limpa, com a noite lá fora implorando para que eu a olhe, com a lua pedindo para que eu fique na janela até às 3h e veja como ela está grande nesta noite no meio da semana, no começo do último mês do ano.
Ele falou comigo, há pouco, pela webcam. Pediu se eu estava vendo-o fazendo compressa no ombro dolorido. Disse que as radioterapias estão no fim. Pediu se já me acostumei a morar sozinha. Terminou dizendo que sente saudade e que quase não me reconhecia de cabelo preso.
Dói muito, amor, vou te dizer assim, nessa carta que não está no papel, mas que chega até você. Dói por ele, por mim, por você e por todas essas mágoas que eu não conto nos dedos que é para não me decepcionar ainda mais. Comigo mesma. Dói pelo sorriso que demorou para aparecer hoje. E pelas nossas brigas. Você não vê, mas dói cada vez que eu te magoo. Por você e por mim. E uma vez mais por você. E pela carta que não te envio. E pelos dias quentes que eu soluço com as cervejas, quando volto do mercado.
Me desculpa pelas cervejas e pelas desculpas. Porque, afinal, elas se acumulam. As duas. Na geladeira, no peito, no sangue, nas noites em que eu prometo chegar cedo e chego tarde. Nas noites em que você me acorda, ingenuamente, e eu te peço para me deixar dormir. No banho de chuva que eu não tomei. Porque não choveu. Nesse amor tão bonito que eu não quero correr o risco de estragar.

Os contos emperraram.
As poesias pararam.
As cervejas terminaram.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Acho que hoje eu vou beber um vinho e fingir que sou bailarina.

A ressurreição da terceira pessoa



Se ela procurasse bem, veria que permaneciam todos os ruídos ensurdecedores. Se procurasse bem, acharia todas as necessidades de gritar, mas nunca as vontades. Encontraria os cacos e depois os começos, exatamente nesta ordem. Encontraria umas histórias amassadas, fracassadas, borradas, ainda com gosto de batom velho. Encontraria o caos, mas nunca os motivos. Encontraria as ausências, mas nunca a duração. Encontraria as chuvas, mas nunca a capa amarela ou o guarda-chuva vermelho.
Era só fechar os olhos e rodar no meio do quarto, com a camisola vermelha, ao som de música erudita. E rodando, deixava estável dentro de si tudo aquilo que sempre se misturava com a rigidez dos dias. Tudo aquilo que resplandecia quando a luz era apagada. E os sonhos continuavam o que a realidade havia começado. E os sonhos davam vida àquilo que a realidade, forçadamente, tentava apagar.
Talvez se não procurasse, também encontraria o silêncio no meio de cada fala ininterrupta, no meio de cada delírio contido. Encontraria as dúvidas no meio da certeza. Encontraria a vontade de sair correndo mesmo quando o corpo se retrai por causa do cansaço. Encontraria o erro na despedida, na partida, no encontro, no desencontro, no transtorno. Encontraria as rimas no branco, no engano. E veria que a lucidez só caminha embriagada.

"Entre cem histórias mortas, ainda assim permanecem uma ou duas histórias vivas." Sartre