quarta-feira, 23 de julho de 2014

Barbas Tortas, 23 de julho de 2014.
 
Querida Lissa,
 
O que se sabe até o momento é que não há nada para ser pensado. Que o pensamento é tentar não pensar em qualquer coisa. Fase de transição. Antes da mudança, mas sem saber que ela irá ocorrer, de fato. Fase de esperar e de não ter que esperar. De sentar e esvaziar a mente, o peito, o corpo. De deixar de comer só pra se sentir um pouco mais leve. E sentir o mundo girando, girando, girando. 
O que sei até o momento é que preciso me manter com a cabeça fora da água. E acho que você (nem mesmo eu) não faz ideia da dificuldade disso. Meu corpo quer ir cada vez mais para baixo. Minha mente quase desiste de insistir. Mas há algo que resiste. Que me acorda cedo. Sabe, bebo café às 6h e, acredite, medito. Esvazio a mente, a mente que já acorda cheia. Cheia de que, me pergunto. Cheia do que não é meu, me respondo. Como pode estar em mim algo que não é meu? 
Chove agora. Parece que só te escrevo quando chove. A verdade é que tenho escrito muito pouco. Quase nada. E não me importo em escrever quase nada. Acho que isso é reflexo dessa fase de transição. Me sinto exatamente no meio. Espero. Espero qualquer coisa. Não tenho expectativa. Os dias correm. A loucura não existe mais. Nem insônia. Me escreva. 


Confusa e com saudade, 
M. Batata

domingo, 13 de julho de 2014

Histórias de condomínio: eu não tenho televisão

O interfone toca. Não sei que horas são. 

- A senhora poderia fazer o favor de diminuir o volume da televisão? 

De novo o porteiro. 

- Até poderia. Se tivesse uma televisão. Mas não tenho. 
- Então é o rádio. 
- Ok, senhor. 

Também não é o rádio. Mas aprendi que não se deve discutir. Aprendi da pior maneira possível.

Acho engraçado quando o porteiro liga. "Não tenho televisão", parece que tenho prazer em dizer. Parece que quero dizer que ele está errado, que está louco. Quero gritar que pare de rondar os corredores, ouvir atrás da porta. O que será que ele já ouviu daqui?, penso. Talvez, no outro dia, eu receba uma multa. Mas nunca é o outro dia. Ninguém denunciaria o volume alto. A vizinha da frente é idosa, praticamente surda. O vizinho do lado esquerdo nunca está em casa, chega bem depois da meia-noite e sai antes das 7h. Em quase dois anos, nunca o vi. A vizinha da direita tem um amante, e eu já o vi, o que impede que ela me denuncie. Ou seja: ninguém reclamaria da droga do volume. Logo, o porteiro fica ouvindo atrás da minha porta.

Me incomoda a possibilidade de ser vigiada. Lembro de 1984. Começo a falar baixo, a pisar na ponta dos pés. Paranoia. Quase não ouço o barulho do rádio, de tão baixo que fica. Então o silêncio. Espio pelo olho mágico e vejo a luz do corredor acesa. Ela só acende quando alguém passa na frente da minha porta, cuja saída não existe. Então, se não há fim para que alguém passe pelo corredor, só pode ter sido ele. Vigiando. É porteiro, não vigilante. E o que torna as coisas piores é que este não tem cara de psicopata. É magro, o cabelo preto, na casa dos 40. Dá boa noite, bom dia. Fala sobre o tempo. Quer mostrar que não é malvado. Mas ele não me engana. Não mais. Pior do que uma pessoa psicopata que tem cara de psicopata é uma pessoa que não tem cara de psicopata ser psicopata.

De tempos em tempos aparece um porteiro louco. A minha memória falha lembra muito bem do último. Anotava no livro de ocorrências que as pessoas batiam as portas de madrugada. Eram cinco, seis, sete registros por noite. Meu e de pessoas que nem existiam. Ele caminhava à noite com aquelas botas de borracha que me causavam arrepios. Tinha olhos arregalados e um sorriso maldoso. Sempre que chegava da faculdade, esperava pelo pior. Achava que algum dia aconteceria uma catástrofe. Que ele mataria alguém. Que alguém o mataria. Era enlouquecedor ouvir as botas pelo corredor, crec, crec, crec, e o eco, e a noite, e a insônia. E dona Erna, no apartamento de cima, que também não dorme, que arrasta cadeiras pela casa. E eu pensando em pegar a faca e deixar ao lado da cama. Ou empurrar a cama na frente da porta, para impedir que seja aberta. Nunca se sabe, pensava eu. 

Esse porteiro foi embora, assim como tantos outros. Eles não ficam mais de um mês no prédio. Não entendo se a síndica é severa demais ou se é preciso que haja rotatividade porque todos eles são loucos e, se conhecerem bem algum inquilino, podem planejar qualquer coisa como um assassinato. Não sou pessimista. Também não tenho televisão. Alguém que reclama do volume de televisão quando não existe televisão só pode estar louco. Eu, não. Sou prevenida. Acontece que talvez esse último porteiro me ache louca, agora que sabe que não tenho televisão. As pessoas acham que não ter televisão é loucura. "O que você faz quando fica em casa?". Minha mãe insistiu para que eu tivesse uma. Até um taxista me disse isso há alguns meses. Veja bem: um taxista que nem me conhece. Como ele pode saber se uma televisão me faz falta? 

Talvez o melhor teria sido mentir. Dizer para o porteiro que tenho televisão. Que posso baixar o volume. Que, por favor, sempre seja cordial e me avise quando o som estiver incomodando os tímpanos dele colados atrás da minha porta.  Talvez a culpa seja minha por não ter televisão.

terça-feira, 8 de julho de 2014

Não posso mais te pintar porque acabaram as tintas. Com o tempo, todos os traços anteriores serão apagados. Não poderei te restaurar. Não há tinta, vou repetir. E me permitir um espaço em branco, uma falta. Uma falta por inteira. Não essas ausências momentâneas que começam na noite e terminam no dia. Mas por enquanto faz frio. E ainda existem essas cores, mesmo que desbotadas. E uma tentativa de organizar, mesmo que não haja nada fora do lugar. E um passado que não sei se foi inventado.
E se não fosse de mentira, seria de verdade. Que diferença faz?

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Notes from the couch XXXI

Tô falando sério que não dói. Só quando as unhas estão roídas até o limite. Ou quando descubro que o meu limite é bem maior do que eu pensava. Tô falando sério que não penso. Que não sei. Que não quero saber. Que não quero decidir. Que não quero bater o martelo. Só quero virar, talvez, mais um copo de cerveja no bar do Buk. E, vazio, batê-lo com força na mesa de madeira. 
Mas não falo sério quando digo que tenho alternativas. E não expectativas. Aqui estão elas. Nos olhos. Nos lábios roxos. Nas orelhas. Nos fios embaraçados no cabelo. Estão, inclusive, nas paredes mofadas do quarto. Também está nas paredes mofadas a idealização de um lar novo. Com um armário na cozinha. Com espaço para estender roupas. Para ter uma vitrola. Quem sabe uma televisão e um sofá. Uma banheira. Uma cadeira mais confortável e menos bamba. Com menos cupins e aranhas. Com mais espaço para dançar. Com mais espaço para guardar o violão, a sanfona, a gaita de boca, a sua guitarra, o meu amor, a sua preguiça e as flores que sempre esqueço de comprar. 
Falo sério quando penso em ir. Ou quando penso em ficar. Quando digo que estou velha demais. Que engordei. Que quero correr, que não quero correr, que quero escrever, mas não escrevo. Falo sério quando estou brincando. E estou brincando agora. E estou feliz agora. E estou aliviada. E não estou frustrada. É porque quase não sou.

Título

quantas noites bebidas
e não dormidas
quantas solidões
quantas presenças nas ausências
quantas esperas
naquele primeiro bar
e quanto conforto
naquele segundo

quantos dias de azia
e cafés sem açúcar
e o coração acelerado
(ora pela cafeína ora pelo drama)
quantas desistências
e quanta alegria nas pendências

quantos trens lotados
e livros lidos
e livros não-lidos
e músicas repetidas
e cansaço
quanta esperança 
do outro lado
quanta vida sobrevivida
e quanto texto sobre perspectiva

quantos contos inúteis
e quanta inutilidade pertinente
quanta vontade de não voltar
e necessidade de ir
quantos lamentos e silêncios
e e-mails não escritos
quantas mensagens diluídas
em um copo de chá quente

quantos sentimentos
quantos lamentos
quantas gargalhadas
e lágrimas
e engasgos
e estragos
e remendos
quanto tudo 
em um dia só
e quanto nada
em quatro anos

quanto engano
quanto encontro
quanta perda
quanta alegria na jukebox
e nas canções cuspidas
quanto alívio no escuro
quanta calma no barulho
quanto medo
quanto sofrimento
e quanta paz
quantos pés encharcados pela chuva
e quantas roupas molhadas de calor
quanta dor
quanto amor
quanta ânsia por finais
e quanta vontade de começos
quanta necessidade de pontos
no lugar de vírgulas
quantas feridas
que agora cicatrizam