domingo, 13 de julho de 2014

Histórias de condomínio: eu não tenho televisão

O interfone toca. Não sei que horas são. 

- A senhora poderia fazer o favor de diminuir o volume da televisão? 

De novo o porteiro. 

- Até poderia. Se tivesse uma televisão. Mas não tenho. 
- Então é o rádio. 
- Ok, senhor. 

Também não é o rádio. Mas aprendi que não se deve discutir. Aprendi da pior maneira possível.

Acho engraçado quando o porteiro liga. "Não tenho televisão", parece que tenho prazer em dizer. Parece que quero dizer que ele está errado, que está louco. Quero gritar que pare de rondar os corredores, ouvir atrás da porta. O que será que ele já ouviu daqui?, penso. Talvez, no outro dia, eu receba uma multa. Mas nunca é o outro dia. Ninguém denunciaria o volume alto. A vizinha da frente é idosa, praticamente surda. O vizinho do lado esquerdo nunca está em casa, chega bem depois da meia-noite e sai antes das 7h. Em quase dois anos, nunca o vi. A vizinha da direita tem um amante, e eu já o vi, o que impede que ela me denuncie. Ou seja: ninguém reclamaria da droga do volume. Logo, o porteiro fica ouvindo atrás da minha porta.

Me incomoda a possibilidade de ser vigiada. Lembro de 1984. Começo a falar baixo, a pisar na ponta dos pés. Paranoia. Quase não ouço o barulho do rádio, de tão baixo que fica. Então o silêncio. Espio pelo olho mágico e vejo a luz do corredor acesa. Ela só acende quando alguém passa na frente da minha porta, cuja saída não existe. Então, se não há fim para que alguém passe pelo corredor, só pode ter sido ele. Vigiando. É porteiro, não vigilante. E o que torna as coisas piores é que este não tem cara de psicopata. É magro, o cabelo preto, na casa dos 40. Dá boa noite, bom dia. Fala sobre o tempo. Quer mostrar que não é malvado. Mas ele não me engana. Não mais. Pior do que uma pessoa psicopata que tem cara de psicopata é uma pessoa que não tem cara de psicopata ser psicopata.

De tempos em tempos aparece um porteiro louco. A minha memória falha lembra muito bem do último. Anotava no livro de ocorrências que as pessoas batiam as portas de madrugada. Eram cinco, seis, sete registros por noite. Meu e de pessoas que nem existiam. Ele caminhava à noite com aquelas botas de borracha que me causavam arrepios. Tinha olhos arregalados e um sorriso maldoso. Sempre que chegava da faculdade, esperava pelo pior. Achava que algum dia aconteceria uma catástrofe. Que ele mataria alguém. Que alguém o mataria. Era enlouquecedor ouvir as botas pelo corredor, crec, crec, crec, e o eco, e a noite, e a insônia. E dona Erna, no apartamento de cima, que também não dorme, que arrasta cadeiras pela casa. E eu pensando em pegar a faca e deixar ao lado da cama. Ou empurrar a cama na frente da porta, para impedir que seja aberta. Nunca se sabe, pensava eu. 

Esse porteiro foi embora, assim como tantos outros. Eles não ficam mais de um mês no prédio. Não entendo se a síndica é severa demais ou se é preciso que haja rotatividade porque todos eles são loucos e, se conhecerem bem algum inquilino, podem planejar qualquer coisa como um assassinato. Não sou pessimista. Também não tenho televisão. Alguém que reclama do volume de televisão quando não existe televisão só pode estar louco. Eu, não. Sou prevenida. Acontece que talvez esse último porteiro me ache louca, agora que sabe que não tenho televisão. As pessoas acham que não ter televisão é loucura. "O que você faz quando fica em casa?". Minha mãe insistiu para que eu tivesse uma. Até um taxista me disse isso há alguns meses. Veja bem: um taxista que nem me conhece. Como ele pode saber se uma televisão me faz falta? 

Talvez o melhor teria sido mentir. Dizer para o porteiro que tenho televisão. Que posso baixar o volume. Que, por favor, sempre seja cordial e me avise quando o som estiver incomodando os tímpanos dele colados atrás da minha porta.  Talvez a culpa seja minha por não ter televisão.