quinta-feira, 27 de março de 2014

nota de explicação

às vezes passo pelo posto de gasolina e sinto pares de olhos me encarando. quando olho, lá estão alguns caras com expressões confusas no rosto, as sobrancelhas contraídas como se não entendessem algo. às vezes espero o sinal abrir e alguém se volta e fica me olhando. e eu não entendia por quê. olhava para a minha roupa esperando encontrar alguma sujeira ou rasgo. até que um dia uma garota do trabalho virou e disse 'você tem a mania de falar sozinha, né?'. e só então eu percebi que todos os olhares confusos são porque eu passo e falo meio alto, meio sozinha. não sei o quão alto as palavras saem da minha boca, mas eu gostaria de falar que não  falo sozinha. eu apenas penso um pouco alto...

terça-feira, 25 de março de 2014

Sobressalto

sempre penso se vou encontrá-los novamente 
e se, ao encontrá-los, ainda terei vontade de matar 
ou se correrei de medo, os olhos arregalados

sempre penso se eles irão me reconhecer
e se colocarão outra vez a faca na minha barriga 
cortem a minha barriga, vão em frente, eu diria 
de qualquer forma, vocês já cortaram o meu coração

sempre penso se um dia eles entrarão no ônibus 
e se, ao encontrá-los, eu gritarei a plenos pulmões 
ou se falarei calmamente: vocês arruinaram a minha paz

sempre penso o que eles vão roubar da segunda vez 
e se deixarão comigo o peso da fraqueza de existir 
roubem as minhas memórias, vão em frente, eu diria 
de qualquer forma, vocês já roubaram o meu futuro

quinta-feira, 20 de março de 2014

Danço há tanto tempo que, quando parar, terei de reaprender a caminhar.

Notes from the couch XXVIII

Não vou mais com o coração na mão. Vou com o copo de cerveja. E já não me incomodam os as, os hojes, os ontens, as chuvas e os nasceres do mesmo sol. Minto se digo que espero. Não espero. Nem me importo com a insônia ou com os pesadelos - quando durmo. Apago tudo da mente quando o despertador toca e eu ligo o rádio. Toca música clássica. E toca silêncio. Um silêncio que também toca meu peito. E ando na chuva nas primeiras horas da manhã como se não andasse, como se meus pés fossem leves e deslizassem na calçada. 
Não vou mais com as unhas roídas. Sou minha e você não me tira esse pertencer. Você nem ao menos sabe como é esse estado de pertencimento. Você que nunca tem, que é sempre dos outros, nunca de si próprio. E te fiz ser o que você é: terceira pessoa. E por ordem de importância você ocupa essa posição. Não coloco mais ponto de exclamação no teu nome nem caixa alta na primeira letra dele. 
Não sei se sou ainda você, mas a verdade é que não dói deixar de saber com certeza se há ou não alguma certeza. Já disse: vou com o copo de cerveja. Às vezes há a lua. Mas já não me dói quando ela cai. Não a observo bordejar no céu. Ainda estou pra dentro. E estando dentro te coloco, com carinho, para o lado de fora.

É importante que se diga: não vou mais com o coração na mão, mas ainda assim vou com o coração. 

E todo dia preciso me repetir isso: não vou mais com o coração na mão, mas ainda assim vou com o coração. Assim, se ao menos não for verdade, a repetição fará ser.


quarta-feira, 19 de março de 2014

Vou pedir baixinho

Vida, permita que nos sintamos mais leves. Amém.
Por favor, deixe eu ser a sua bailarina. Compre uma caixa esmaltada bem bonita, forrada de veludo vermelho. Posicione-me bem no meio da caixa. Guarde-a em algum lugar seguro, mas de vez em quando abra o meu recinto e me deixe dançar - assim mesmo, o corpo meio duro, meio plástico, meio meu, meio teu, mas um corpo protegido do mundo.
Por favor, não permita que eu me desfaça. Preserve o que ainda resta. E o que resta é esse sonho de ser bailarina pequena de caixa de música.
Barbas Tortas, 19 de março de 2014.

Querida Lissa,

se eu tivesse de dizer, não saberia por onde começar. Não sei se há um começo. Se há uma ordem lógica. Se há qualquer ordem nisso que chamo de vida, e que outros nomeiam sobrevivência.
Acho que se chega a um limite em que nada mais faz sentido. E então torna-se obrigatório desistir ou arrumar outra maneira de reorganizar os móveis, limpar a sujeira debaixo do tapete, abrir a janela e encarar a luz do dia. E todo recomeço é difícil porque se sabe do segredo. O segredo do ciclo. Começo-meio-fim. Isso quando o meio tem a mesma duração que começo e fim, porque às vezes é tão efêmero que os olhos não conseguem registrar, mas o coração, sim.
Perdi as contas de quantas vezes anotei os recomeços na agenda amarela. E quantos deles realmente foram recomeços, e não vírgulas. Bukowski disse que tudo bem, desde que você saiba que está em uma armadilha. Mas agora eu vejo que não saber é o melhor. É difícil mexer as marionetes porque mexer não é diversão. É parte da rotina. Entretanto, há o sentimento de não-sentir-se-enganado.
Ainda me sinto enganada. E pior do que sentir-se enganada é estar com medo. Um medo que amanhece cravado no coração, e que vai aumentando com os raios do sol, ou com a fúria que os pingos de chuva batem na calçada. 
Descobri que no medo está a minha força. Ou a minha perdição. Às vezes tenho tanto medo da rua, e esse medo é tão descontrolado, que me faz não sentir o menor medo ou remorso de matar. Já faz um ano e tantos meses que moro aqui. E há cada vez mais mendigos e loucos pelas ruas. Não sei se eles sempre estiveram lá ou se estou ficando louca como eles, o que me faz observar a existência semelhante.
Estamos todos perdidos, eu costumava pensar, nos finais de tarde, quando pegava o trem lotado. Preferia pensar nisso do que assumir a irritação que deixava minha face vermelha quando um corpo desconhecido encostava no meu. Mas já não consigo pensar mais nisso, uma vez que o pensamento transformou-se em fato e instalou-se na mente, tornando-se inútil a repetição.
Agora eu não penso. Sou uma mente vazia que faz um percurso de 80 minutos de olhos e coração vazio. E às vezes me dói tanto assumir essa postura que costuro uma esperança nesse mesmo lugar que habita o medo, uma esperança tola de um dia voltar a me encher de segurança e autoconfiança. 
Deito na cama, à noite, e penso quando vou amanhecer sem esse peso. E tenho tanto medo de um dia não amanhecer sem medo que mal consigo fechar os olhos.

Hoje eu só precisava te contar que me desmontei para tentar me remontar melhor depois de um tempo.

Com amor,
M. B.

segunda-feira, 17 de março de 2014

Nota mental

A gente sempre precisa ir e já não importa muito bem pra que lugar nem com quem nem se os sapatos estão gastos ou a mente cansada. A gente sempre precisa ir, mesmo quando o coração dá sinais de falência. A caminhada faz o sangue circular. E, circulando melhor, o corpo pesa menos. Acho que a gente sempre precisar ir de olhos fechados, mas nunca com o peito fechado. A gente sempre precisa ir sem querer saber do amanhã. Nem do hoje. Não importa o saber. Importa o viver.

sábado, 15 de março de 2014

A partir de hoje a minha insônia se chama Sônia. É tão real e presente que ela precisa ter nome próprio.

Quantos vocês na ausência

Engraçado que lembro de você, mas não lembro de mim. Lembro da música e do vinho, das estrelas e da textura do chão, mas não lembro da minha imagem lá, não lembro de sentir o meu corpo. Penso se fui eu quem me matou. E como posso recordar disso se desfaleci em mim mesma.


Hoje o céu azul não é a chuva que eu previ, ontem. Ela cai também na inexistência. Como a minha imagem que eu não guardei. 

quinta-feira, 13 de março de 2014

Embora eu te diga que não

Ontem eu te ouvir bater no vidro. Pedia incessantemente para entrar. Era tão ávida a sua vontade de invadir a casa que meus olhos mal se fecharam durante a noite. Mesmo cansada, não sucumbi. Permaneci imóvel na cama, os olhos se diluindo em dor. Mas era só isso que doía. Meu coração descansou em paz, mesmo que a mente não tenha se desligado. Hoje já não sei se será assim. Tampouco saberei sobre o amanhã. Entretanto, tenho me mantido ilesa. Aguento os seus esmurros na janela. Janela esta que é tão frágil que pode se romper devido à sua força. 
Tentei abafar os ruídos com música clássica, mas a sinfonia que se formou foi tão caótica que desliguei o radinho de pilhas que meu avô deu. Nos intervalos dos seus esmurros, ouvi o silêncio. E os gritos dos bêbados pelas ruas. E o vizinho que nunca vi colocando a chave na fechadura da porta.

Ontem eu te ouvir bater no vidro e fingi que não era comigo.
Vai Chover. Vai chover.
Olho para a cortina balançando e penso.
Espio por ela e vejo o céu rosa.
Sei que vai chover mesmo assim.
Meus olhos estão esbugalhados de sono.
Minha garganta começa a doer.
Casa suja. Geladeira vazia.
Estômago vazio. Peito cheio.
Aumento o volume da música. Fecho os olhos.
Não consigo dançar. Meu corpo pesa.
Abro os olhos. Uma pomba pousa a dois metros.
Penso quando vou conseguir dormir.
Talvez amanhã. Hoje vou sair.
E beber vinho. E tentar ser para fora.
Amanhã eu penso o que vou querer ser.
Amanhã eu penso se a insônia vai deixar de ser.
Vento de outono. Chuva de verão.
Caem os primeiros pingos.
Coloco as botas e pego um guarda-chuva.
Caminho para a tempestade.


Sou uma contínua explosão interna. Agora sou grande, mas continuo pequena. Sou grande por dentro. Minha idade, entretanto, cospe o tempo em mim, dilui-o rapidamente. Corri ao invés de caminhar. Quero tudo pra ontem.

sexta-feira, 7 de março de 2014

Às vezes paro na sinaleira e esqueço de atravessar



Foi em algum dia de algum mês. Ele se abaixava lentamente para pegar um balde de água e, num movimento brusco, tornava a deixar o corpo ereto. João, Zé, Mário, sabe-se lá que nome ele tem. Se tem nome. Em seguida, olhava para os lados como se estivesse sendo vigiado, como se quisesse dizer que aquele balde de água não lhe pertencia. Como se estivesse na sua frente por coincidência. Quando tinha certeza de que ninguém estava cuidando, mergulhava as mãos, em formato de concha, na água recolhida pelo balde. Num movimento rápido, jogava-a na face encardida. A água escorria pelo nariz, pelo queixo, pelo peito nu, também encardido, e era absorvida na cintura, quando chegava na cueca preta. 
A dois metros, sentado na grama e com um pedaço de mato na boca, um outro homem o olhava seriamente. Cada concha d`água que escorria pela face do homem era acompanhada de uma frase do outro que observava. Ali ficou uma sujeira, o outro parecia dizer, lave melhor atrás da orelha, enxague melhor os cabelos. Novamente o movimento de se abaixar, pegar água, levantar, olhar para os lados, mergulhar as mãos, então lavar as axilas, encher novamente o balde, mergulhar a escova de dentes na água, esfregar as sardas já puídas nos dentes amarelados. Por último, os pés foram lavados seguidos dos mesmos comentários daquele que o observava. Não trocou a cueca, colocou um jeans velho e uma camiseta igualmente gasta e sentou-se ao lado do outro, ainda olhando para os lados. Ficaram ali, os dois, lado a lado, ora encarando a água ora encarado o céu. Logo anoiteceria. 
Entendi tudo. Entendi a água sendo capturada pelo balde. Entendi a ânsia pelo asseio. Entendi as dicas de limpeza do outro homem. Entendi a demora em um banho adaptado. Só não entendi por que diabos o homem olhava para os lados, ansioso, para constatar que ninguém o estava observando. Afinal, ele estava no córrego, no meio de uma avenida, às 18h de uma sexta-feira.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Outra vez perco a vez

Outra vez eu vou te ver e te levar naquele lugar que não existe. Aquele lugar onde os aviões nunca param de pousar e o céu é de um azul aveludado e a grama quase brilha de tão limpa. Outra vez vou te mostrar os caminhos que não levam a lugar nenhum e sentir o estômago queimando por estar gelado. Outra vez eu vou beber café em excesso só para me sentir um pouco bêbada, um pouco mais dentro dessa realidade que é deles, nunca minha. Outra vez eu vou sentir a calma saindo pelos olhos, os olhos consumidos pela incerteza de nunca mais haver certeza para garantir. Outra vez o presente vira passado e o passado vira futuro. Outra vez eu junto os cacos e costuro uma colcha de ilusões. Outra vez me escondo debaixo dessa coberta tecida, acrescento mais vida e danço na escuridão. Outra vez perco a fala, mas não a rima. Outra vez cubro a ferida e finjo que só tem ida esse movimento de vice-versa.
e se não for você talvez ainda seja eu. 

que seja eu. 

que não seja ela. que não seja dela esse pranto que eu enfeitei.

que seja.

segunda-feira, 3 de março de 2014

Notes from the couch XXVII

Aqui é você. E já não somos nós nesse reflexo das luzes da cidade na minha janela que separa os dois mundos.

Aqui é você e a sua vontade de penetrar pelo vidro fino. E já não é ela quem me sorri, quem me fala, quem me olha.

Olho para dentro e não consigo voltar os olhos para fora. Estou sempre caindo mais fundo. Não tenho em que me agarrar. Olho para dentro e vejo a escuridão. Fecho os olhos e caio, caio cada vez mais para dentro do vazio. Ele me esquenta. É como um útero. E já não é mais você porque você não pode sentir essas ondas de calor. Porque você nunca poderá saber como é se sentir dentro de mim.

Aqui é mar. Outras vezes é falta de ar. Mas não me afogo nem me sufoco. Nem mato ela. Tem olhos tão gentis e nariz fino e mãos macias. É porque já não é mais ela quem sorri e pede licença quando bate na porta. Não me importa a cor dos olhos. Não me importa se esse olhar já não tem mais cor. Não me importa se chove no meio do sol. Tampouco me importa se um dia irei me importar.

Aqui é e não é.