sexta-feira, 7 de março de 2014

Às vezes paro na sinaleira e esqueço de atravessar



Foi em algum dia de algum mês. Ele se abaixava lentamente para pegar um balde de água e, num movimento brusco, tornava a deixar o corpo ereto. João, Zé, Mário, sabe-se lá que nome ele tem. Se tem nome. Em seguida, olhava para os lados como se estivesse sendo vigiado, como se quisesse dizer que aquele balde de água não lhe pertencia. Como se estivesse na sua frente por coincidência. Quando tinha certeza de que ninguém estava cuidando, mergulhava as mãos, em formato de concha, na água recolhida pelo balde. Num movimento rápido, jogava-a na face encardida. A água escorria pelo nariz, pelo queixo, pelo peito nu, também encardido, e era absorvida na cintura, quando chegava na cueca preta. 
A dois metros, sentado na grama e com um pedaço de mato na boca, um outro homem o olhava seriamente. Cada concha d`água que escorria pela face do homem era acompanhada de uma frase do outro que observava. Ali ficou uma sujeira, o outro parecia dizer, lave melhor atrás da orelha, enxague melhor os cabelos. Novamente o movimento de se abaixar, pegar água, levantar, olhar para os lados, mergulhar as mãos, então lavar as axilas, encher novamente o balde, mergulhar a escova de dentes na água, esfregar as sardas já puídas nos dentes amarelados. Por último, os pés foram lavados seguidos dos mesmos comentários daquele que o observava. Não trocou a cueca, colocou um jeans velho e uma camiseta igualmente gasta e sentou-se ao lado do outro, ainda olhando para os lados. Ficaram ali, os dois, lado a lado, ora encarando a água ora encarado o céu. Logo anoiteceria. 
Entendi tudo. Entendi a água sendo capturada pelo balde. Entendi a ânsia pelo asseio. Entendi as dicas de limpeza do outro homem. Entendi a demora em um banho adaptado. Só não entendi por que diabos o homem olhava para os lados, ansioso, para constatar que ninguém o estava observando. Afinal, ele estava no córrego, no meio de uma avenida, às 18h de uma sexta-feira.