quarta-feira, 14 de setembro de 2016

P.

O que ficou daquilo tudo, eu não sei. E é o não saber que me preocupa. Se soubesse, pelo menos saberia lidar. Pelo menos saberia onde está o rasgo, costurar, esperar pela cicatriz. Se não sei, nada posso fazer a não ser administrar a água que escorre pra dentro, e que vez ou outra afoga o peito.

O que ficou daquilo é uma ferida permanentemente aberta nos olhos, que eu desesperadamente tento esconder. Mas não escondo de mim mesma. E quanto mais tento, mais evidente a ferida se torna.

Saio pra fora e você me magoa pra dentro. Sempre magoou, afinal. E foi tanto que em determinado momento eu, que sempre fui pra fora, acabei indo pra dentro. E agora meu corpo compensa indo pra cada vez mais longe, me perdendo em ruas cinzas com pessoas que não me olham, não me ouvem, não falam comigo.

Me escondi porque já não queria mais saber qual outra parte de mim, e dela, você machucaria.

Me escondi porque precisava estar longe pra compreender. Compreender que não haveria compreensão.

O que ficou daquilo tudo, eu não quero mais saber.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Eu acho que eu já não suportaria voltar pra lá e encarar aquele céu cinza- que tanto fazia pesar o meu coração. Acho que era demasiado grande o meu pessimismo em olhar pro futuro e ver um lugar onde eu não queria estar, e só agora olho pro agora e penso que não é bem assim. Começo até a gostar desses prédios sempre tão altos e desse céu do vigésimo andar que é quase sempre azul aqui de cima e também gosto quando os aviões passam bem perto e gosto da saudade que eu sinto de casa - embora saiba que ela é muito fantasiada. 

E hoje eu já não viveria do mesmo modo naquele apartamento apertado, o coração apertado, os olhos sempre tão cansados, a vizinha no andar debaixo batendo com um cabo de vassoura para eu parar de fazer o barulho que eu não fazia. Eu não fazia ideia do que me aconteceria. E agora eu faço. Mas sei que essa ideia é meio errada porque continuo não fazendo ideia de onde estarei daqui um ano. Não lá. Lá eu já não suportaria. Eu não aguentaria aguentar. 

E talvez tantas negativas em frases longas e mal pontuadas só estejam querendo dizer: sim. Porque dois nãos na mesma frase anulam a negação. Mas até agora eu dispensei o cuidado com a pontuação para não deixar passar duas negações na mesma frase. Então eu não suportaria. Eu acho que não, quero dizer. Porque não posso afirmar uma coisa que não aconteceu nem está acontecendo.

Enquanto escrevo todas essas coisas meio sem nexo pra você, mas com nexo para mim, o sol cai e o azul do céu vai ficando meio rosa. E eu penso que é até bonito gostar de uma cidade que eu pensei que não gostaria. Que surpresa boa eu preparei pra mim, afinal. Tanto pessimismo pode fazer bem.

Outra frase sem nexo:
Você era a personagem em mim que nunca me pertenceu. 

Agora uma frase do Cortázar, que também não tem nexo pra esse texto sem nexo, mas que eu achei bonita e queria guardar em algum lugar:

"Havia muito tempo perdido em você."

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Das outras que vivem em mim

Aos 11 anos eu descobri que podia ser qualquer coisa. Eu ficava sozinha em casa à tarde e era livre pra fazer o que quisesse. Então eu juntava roupas da minha mãe, minha tia e minha vó para criar personagens. Eu era Maria, Rosa, Amélia. Vivia na década de 1930, 1980, 1970. Falava vários idiomas (inventados). Na sala, eu montava todos os cenários possíveis. Na mente, todas as personagens possíveis. Foi assim que eu vi quantas possibilidades cabiam no meu peito. E decidi que nunca na minha vida seria uma coisa só. Mas que seria, principalmente, a soma de tudo. 

Quando eu tinha uns 15 anos, uma amiga disse que eu parecia um camaleão, pois me adaptava a qualquer pessoa. Na hora, não pensei em dizer que ser um camaleão era bom. Não disse porque esse segredo era só meu - e não me importava se as pessoas viam com maus olhos o fato de eu poder ser quantas pessoas quisesse. 

De fato, nunca mais fui uma coisa só. É verdade também que não fui mais tantos personagens. Só alguns sobreviveram nessa vida adulta. Mas os que ainda existem, existem com uma intensidade absurda. Gosto mais de ser Maria. Mas não posso ser Maria no trabalho. Então, no trabalho, sou Thaís. Mas não a mesma Thaís que sou para meus familiares. Nem para os amigos. Muito menos para os desconhecidos. 

Meu peito ainda é cheio de possibilidades. E são essas possibilidades que matam as neuroses de Maria. Ser Maria mata a timidez de Thaís. E é só mantendo todas essas pessoas vivas que eu, como unidade, consigo me manter viva.