terça-feira, 29 de março de 2016

μητέρα

O que te sobra é o teu próprio vazio maquiado de certezas 
O que me sobra é essa ferida que nunca deveria ter me pertencido 
O que te rasga por dentro é a possibilidade de perda 
O que me rasga por dentro é a incerteza da perda 

O que te sobra é uma ingenuidade que me envergonha 
O que me sobra é uma tristeza tão profunda que você não a vê 
O que alimenta teu caos é a mesquinhez de cidade pequena 
O que alimenta minha paz é o fluxo de cidade grande 
O que te sobra é a sensação e a confirmação de pulsos atados 
O que me sobra é a vontade de nunca ficar no mesmo lugar 

O que te sobra é a delimitação de um espaço 
O que me sobra é nunca ter espaço nenhum 
O que te sobra é o medo de olhar pra frente 
O que me sobra é a coragem de nunca olhar pra trás 

Tão pouco, querida, tão pouco faltou para que nunca mais existisse dor 
Tão pouco faltou para que o desespero se diluísse 
Tão pouco ficou dessa empatia que eu sempre tive por ti 
Tão tarde eu compreendi que não poderia haver compreensão 

Há tanta diferença nessa ausência de vida 
Porque não pode ser vida o que se vive dentro do medo 

O que te sobra é um futuro marcado 
O que me sobra é um presente inventado 
E ainda bem que, depois de tudo isso, me sobra essa possibilidade.



terça-feira, 15 de março de 2016

Notas de SP VI

(01/02/16)
Lá estava ela: as pernas fininhas, fininhas... a pele morena, o vestidinho azul com bolinhas brancas quase cobrindo as sandálias de plástico, rosa. Ia dando pequenos pulinhos ao lado da mãe, no meio da multidão que pegava o trem das 19h. De vez em quando, os dedos longos e também finos tocavam o ombro da mãe. A mulher se virava para a criança, uma apatia doce nos olhos, uma rigidez contida nos lábios secos. 
A cabeça da menina reluzia. O sol de fim de tarde projetava umas sombras amareladas na careca e evidenciavam um pequeno tufo de cabelos perto do pescoço que escapara da máquina do cabeleireiro. Talvez recém tivesse saído do hospital, onde lhe teriam cortado as madeixas? Talvez tenha raspado o cabelo porque tivera vontade? 
Os pulinhos da menina se alternavam com gritinhos agudos, quase animados. Mãe e filha não notavam os olhares para o corpinho da menina, tão miúdo, tão magrinho e tão animado naquele fim de tarde quente, no meio daquelas pessoas cansadas.

Impossível não lembrar de M. A mesma estatura, a mesma pele morena, a mesma alegria. Um corpo que pula retido é um corpo que diz: eu não quero morrer. Um corpo que toca o ombro da mãe com delicadeza é um corpo que diz: eu não quero te perder. 
 Não olhei os olhos, que imaginei serem escuros. Não olhei os olhos porque seria demais. Porque seria M. demais se eles realmente fossem escuros. E porque não queria olhar pros olhos da menina e pensar no mesmo destino que M teve. 
Sim, desejei enquanto descia a escada pra plataforma, que ela tenha cortado o cabelo apenas por causa do calor.

Tempo verbal

Juro que sim, que fomos nós naquela Porto Alegre desbotada. Que havia aquele apartamento de um quarto, na esquina da rua que subíamos para ir aos bares e gastar o dinheiro que não tínhamos. E que no meio da noite ouvíamos o morador de rua, que dormia no estacionamento ali em frente, gritar "feito". Nos finais de semana após o pagamento, íamos àquele cinema hipster e vazio que vendia discos de vinil e livros antigos. Dava uma sensação gostosa pedir uma Heineken de R$ 5 e entrar na sala escura, só com uma estrela branca na parede. Dava uma sensação estranha sair do cinema com os olhos marejados, um cheirinho de chuva mesmo nas paredes de concreto, e aquelas ruas vazias que atravessávamos com longos e apressados passos.

Juro que éramos nós naquela época, ainda que não comêssemos berinjela ou queijo branco. Parece que foi há tanto tempo. E não é estranho que tenha sido no ano passado, porque já não somos quem fomos. E é como se um ano tivesse valido por cinco.

(Essa cidade cinza.)

Mas juro que fomos boêmios, uns boêmios que conseguiam engolir cerveja ruim, quase quente, só pra amenizar o verão ou os gritos dos bêbados da rua no meio da madrugada. E eu usava umas sapatilhas de balé duas vezes por semana na esperança de um dia ficar na ponta dos pés. Nunca fiquei. Mas juro que tentei. Em frente ao espelho longo, me curvei dezenas de vezes para alcançar um pé de bailarina que eu não tinha. Mas não fui. Não fui bailarina. Mas fui tanta coisa, tanto pouco de tudo, tanto vazio, tanta saudade. Juro que sim, que fui. E que vez ou outra lembro do amanhecer naquela janela emperrada do quarto. E penso na gente e nas longas conversas sobre medo e sobre o-que-vai-acontecer-com-a-gente. Já aconteceu. Sempre aconteceu. Mas havia uma agonia que nunca morria. Só agora, só agora que morreu.

E se naquela época pudéssemos nos ver hoje, ainda assim eu teria chutado, bêbada, as garrafas vazias de cerveja no meio daquela rua movimentada. Ainda assim nos sentaríamos naquele bar quente, daquela balada quente, e tocaríamos piano e gaita. Ainda assim eu me veria nos olhos daquela única mulher nua. Ainda assim eu gritaria para dentro o meu desejo incessante de ser nada.

Juro que sim. Que fomos. Mas que não somos mais. E voltar praquela Porto Alegre desbotada, um ano depois, me fez perceber que hoje eu já não conseguiria mais encontrar o meu caos na calmaria da cidade, uma vez que encontrei a minha paz no caos desta outra cidade. E que eu precisaria fazer um esforço absurdo para aguentar o peso no peito que mantive em mim por dois anos. E revisitando os bares, a fachada do apartamento minúsculo onde morei, me senti fora do tempo. Me senti fora daquilo que fui. Como se tivesse sido expulsa da bolha do eu do passado. Me senti ainda mais deslocada do que naqueles anos em que fui residente. Quase não reconheci as ruas, os meus bares preferidos, o lugar do balé, o mercado. 

Quase não me reconheci.
Porque já não sou.
Embora haja menos caos, não sei que tipo de paz se firmou em mim.

(Tantas cores nessa cidade cinza.)

segunda-feira, 7 de março de 2016

Tantas antagonias (nota sobre ela)

Nesses dias agoniantes, quando o coração pesa sem motivo aparente, e a tristeza faz os ombros ficarem caídos... nesses dias agoniantes eu sinto que sobrou quase nada, apesar de tudo. Sinto que todas as pequenas coisas de repente se apagam. E que nesse amplo espaço no peito fica apenas o vazio de ser. Ou de não ser.