quinta-feira, 28 de julho de 2016

Nota sobre Maria

Maria vai bem, apesar de escondida. Às vezes some por meses, e depois volta. É sua ausência constante que mais me preocupa. Quase acredito que Maria morre aos poucos, que deixou a cidade pesada entrar no seu peito tão leve, que secou seus olhos que sempre foram úmidos.

Não sei até quando Maria vai bem. A verdade é que ando me esquecendo com frequência dela. E choro escondida quando lembro do meu esquecimento. E prometo nunca mais esquecer-me dela. Mas volto a esquecer. E ela volta a sumir. Logo ela, que sempre reinou. Que sempre esteve tão presente nos dias. Os dias, os dias que agora são esse emaranhado de preenchimentos.

Talvez seja isso: a consistência dos dias está apagando Maria. 

O pior de tudo isso não é o sumiço de Maria, é conseguir aceitar a sua provável e próxima inexistência. E ter de lidar com uma primeira pessoa do singular toda manchada de neuroses.

Não quero que Maria vá embora. Mas também não sei o que fazer pra ela ficar.

Do querer

Hoje eu quis um pouco daquela solidão que me afagava em cidade quase grande. Quis me despir desses personagens inventados - inventados sem querer. Quis fechar os olhos e deixar sair tudo o que não é meu. E chorar essa dor que de novo não é minha, mas está em mim. (Nunca passa essa dor que eles plantaram em mim. É como uma flor, como uma erva daninha - eu não preciso regar para que ela cresça. Deixo apodrecer em mim. E ali continua ela, um pouco mais forte do que antes, cobrindo as entranhas. Mas aqui estou eu, também um pouco mais forte para cuspir pra fora essa dor e equilibrar o que está dentro.) 

Hoje eu quis. E isso tão raro. Quase não quero. Quase não sou de tanto que deixo seguir. Hoje eu quis comer o pão da padaria da esquina e sentir o vento gelado e os pés frios daquele inverno de 0 graus. Hoje eu quis aquele céu estrelado e aquela lua gorda no meio da estrada sem casas ou apartamentos ou arranha-céus. Quis um céu que não fosse laranja. Quis olhar pra cima sem esse medo que está sempre nos passos apressados. (É sempre apressada essa vida que vive em cidade cinza. E é preciso dar uma mão de tinta amarela todo dia pra que outro corpo não vire só outro corpo.) 

Hoje eu quis sentar naquela cadeira amarela daquele boteco de esquina e pegar aquele gatinho no colo. Quis cruzar os pés em cima de outra cadeira e beber duas, três, cinco cervejas ruins sem programar a ressaca evidente da manhã seguinte. Quis quase perder o último trem. Quis ser Maria. 

Mar. 
Ia. 

 Ainda sou tanto aquilo lá.

"A vida tinha sido isso, trens que partiam, levando e trazendo pessoas, enquanto a gente ficava na esquina com os pés molhados, ouvindo um piano mecânico e gargalhadas, tamborilando com os dedos nas vitrines amolecidas do bar, onde nem sempre se tinha dinheiro para entrar." Julio Cortázar
25/11/2015

Quero te pegar no colo e cuidar de ti. Limpar as mágoas, arrancar as agonias, pentear o cabelo, tirar as feridas na pele. Quero te pegar no colo e te privar de todas as dores, de todas as possíveis perdas, de todas as prováveis decepções. Quero comprar cervejas, fazer sopas, limpar a casa e só deixar entrar na bolha o melhor que o mundo pode oferecer. Quero poder inventar se ele não oferecer nada. Quero te dar um nada para você preencher. Quero te fazer chorar de tanto rir. Todas as noites. Todas as manhãs. Como ontem. Como amanhã.

Cartas não enviadas XII

Engraçado pensar que você tinha voltado. Mais engraçado ainda foi perceber a lucidez de minha mente, que não vacilou um segundo sequer ante a perspectiva de te ter de volta. É claro que o corpo tremeu, que os olhos ficaram úmidos. Mas o coração, que sempre se contorcia, permaneceu quase sereno - como se aceitasse o destino, qualquer destino, de ter de novo ou nunca te ter.













(...)
25/11/2015 

A gente vai indo. Escrevo no caderno vermelho quando dá. Leio quase todo dia – alguns dias mais do que em outros. Mas escrevo muito mais fluidamente aqui. Não há esforço em preencher essa página. A caneta não pesa na mão. A letra sai igual e legível sem o menor esforço. 

A gente vai indo. Faço chá à noite, falo com mamãe aos domingos e leio Caio Fernando Abreu no trem, enquanto vou para o trabalho. Penso em café depois do almoço. Almoço pouco. Escrevo textos na mente, textos que nunca param aqui – nem no caderno vermelho. 

A gente vai indo melhor que nunca. Melhor do que sempre. Melhor do que antes. Uma dupla. Um nós. Um sujeito que indica duas pessoas. Um nó. Algo que não se quebra em primeira e segunda pessoa do singular. Algo que não se dissolve. Prefiro ser nós do que ser eu. É solitário ser uma ilha, embora faz-se momentos em que é necessário. Mas são tão raros! E é tão fácil dizer “hoje preciso ser sozinha”. 

A gente vai indo tão bem. Mesmo sem sofá, sem vitrola, sem disco do Chico, sem cortinas na sala, sem panelas na cozinha. Mesmo sem criado mudo. Mesmo sem sapateira, chaleira, cadeira. Mesmo sem dinheiro. A gente vai indo bem com as cervejas do final de semana e com as corridas de segunda, quarta e sexta. A gente vai indo.