quinta-feira, 28 de julho de 2016

Do querer

Hoje eu quis um pouco daquela solidão que me afagava em cidade quase grande. Quis me despir desses personagens inventados - inventados sem querer. Quis fechar os olhos e deixar sair tudo o que não é meu. E chorar essa dor que de novo não é minha, mas está em mim. (Nunca passa essa dor que eles plantaram em mim. É como uma flor, como uma erva daninha - eu não preciso regar para que ela cresça. Deixo apodrecer em mim. E ali continua ela, um pouco mais forte do que antes, cobrindo as entranhas. Mas aqui estou eu, também um pouco mais forte para cuspir pra fora essa dor e equilibrar o que está dentro.) 

Hoje eu quis. E isso tão raro. Quase não quero. Quase não sou de tanto que deixo seguir. Hoje eu quis comer o pão da padaria da esquina e sentir o vento gelado e os pés frios daquele inverno de 0 graus. Hoje eu quis aquele céu estrelado e aquela lua gorda no meio da estrada sem casas ou apartamentos ou arranha-céus. Quis um céu que não fosse laranja. Quis olhar pra cima sem esse medo que está sempre nos passos apressados. (É sempre apressada essa vida que vive em cidade cinza. E é preciso dar uma mão de tinta amarela todo dia pra que outro corpo não vire só outro corpo.) 

Hoje eu quis sentar naquela cadeira amarela daquele boteco de esquina e pegar aquele gatinho no colo. Quis cruzar os pés em cima de outra cadeira e beber duas, três, cinco cervejas ruins sem programar a ressaca evidente da manhã seguinte. Quis quase perder o último trem. Quis ser Maria. 

Mar. 
Ia. 

 Ainda sou tanto aquilo lá.

"A vida tinha sido isso, trens que partiam, levando e trazendo pessoas, enquanto a gente ficava na esquina com os pés molhados, ouvindo um piano mecânico e gargalhadas, tamborilando com os dedos nas vitrines amolecidas do bar, onde nem sempre se tinha dinheiro para entrar." Julio Cortázar