quarta-feira, 30 de outubro de 2013

O dia em que desmanchei

Nem ao menos sinto a veia romper. Não sinto o sangue que sai de mim. Estou inerte à dor. Só vejo o líquido: vermelho, quase uma mistura de têmpera com água. Talvez eu seja mesmo de plástico. Talvez eu tenha virado uma personagem das minhas próprias histórias. Talvez eu, personagem de mim mesma, tenha me molhado na chuva. As cores de mim estão escorrendo. Quase sinto vontade de colorir uma folha de papel com a minha própria tinta. 

Desenhar um coração com a dor que não chega até mim.

domingo, 27 de outubro de 2013

Para Maria

Às vezes eu me pergunto se você existe. Se está voltando. Se algum dia realmente foi embora. Às vezes eu me pergunto o que vem com a noite. E lembro que nunca mais olhei pro céu em busca dela, ela que é minha. Às vezes eu me pergunto o que guardei de ti. E o quão disso realmente existiu. 
Me pergunto se sempre vou me perguntar. Se não vou esquecer. Se no silêncio da estrada sempre irei lembrar. Me pergunto se bebo outra taça de vinho. Se não bebo. Se devo voltar no lugar das formigas só para ver os aviões. Se tranco a casa e saio pelas ruas vazias. Se fico vazia.
Às vezes eu penso o que sobrou disso. E para onde foi o que não ficou. Às vezes acendo o cigarro e balanço o pé no ritmo de uma melodia que só eu sei. Depois pego a gaita de boca e pergunto pra ela, meus lábios nos espaços miúdos, o que foi que eu fiz quando eu nem sabia que estava fazendo alguma coisa. 

Nem agora sei. 
Me pergunto se algum dia saberei.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

O que nunca fui

Eu teria sido uma boa bailarina se minha mãe tivesse insistido. Teria sido uma bailarina se não preferisse levar sacolas de roupas para a escolinha e brincar que era outras pessoas, sempre outras, nunca eu. Eu teria sido uma boa bailarina se minha mãe tivesse optado pagar a mensalidade cara do balé. Eu até dançava na ponta dos pés, ao redor da mesa da sala, a pedido do médico. Tinha os pés tortos, ele dizia. Talvez ainda tenha. Talvez ainda saiba ficar na ponta dos pés. Talvez um dia tente.

Notes from the couch XXI

Parece que vai chover de novo. Chover, não. Parece que vai acontecer qualquer coisa estrondosa. Chuva deve ser eufemismo. São 5 da tarde e tive de acender a luz. Nuvens pretas se instalaram do lado de fora da janela e a porta do banheiro bateu. Pulei da cadeira com o estouro. Nenhum pingo sequer caiu, mas consigo sentir o cheiro de tempestade. As árvores estão agitadas e as pessoas aumentaram o passo. Batem o pé repetidas vezes na calçada, esperado a sinaleira abrir. Estão ansiosas. Precisam correr para casa antes que qualquer coisa aconteça. 
Enquanto escrevo, uma velhinha caminha pelo andar. Escuto a sua bengala batendo no chão repetidas vezes. Já a vi caminhar por aí. Nunca sai do 3º andar. Acho que nem deve sair de casa mais do que uma vez por semana. Parece alheia ao temporal que está por vir. Caminha delicadamente, com calma. Faz a volta no andar e torna a repetir o mesmo movimento. Não há qualquer outro movimento no prédio, exceto o eco dos seus passos na lajota cinza. Na rua, pela primeira vez, o vento consegue se fazer maior do que o ruído dos carros. Parece que canta, o vento. Parece que resmungam de medo, os carros. 
Agora, o primeiro relâmpago seguido do trovão. Lembro que um dia ela me disse que ficou bebendo vinho durante a madrugada, enquanto a tempestade desmanchava as ruas de Porto Alegre. Pensei no quão bonito aquilo soava. E jurei pra mim mesma que um dia teria coragem para deixar a janela aberta no meio da noite, no meio do temporal, no meio de qualquer coisa estrondosa.

Vai acontecer. Sinto que vai. Mas não sei se meu sentido é confiável. Sempre acho que alguma coisa muito grande vai acontecer. Todo o tempo.

Eles gritam na rua. Eu desligo a música clássica e ouço o silêncio sufocado pelo vento. 

A chuva começa a cair. Parece que nunca mais vai parar de cair água no telhado.


terça-feira, 22 de outubro de 2013

Dom Pedro nasceu

Domingo eu fiz uma música chorada  
Toquei e desmanchei na boca da gaita o que estava na minha 
Ontem você me mandou a sua música de desânimo 
E eu pensei quão bonita elas ficariam juntas 

Porque há entre a gente a mesma coisa que entre elas. 

O entre. 

E do meu choro. 
E do seu desânimo. 
A música.

domingo, 20 de outubro de 2013

A gente acostuma a dizer não. A dizer sim. A dizer tanto faz. E, finalmente, a não dizer.

Notes from the couch XX

Dói-me os pontos, as vírgulas, os parênteses. Dói em mim principalmente os parênteses. E os inícios. Primeiro parágrafo. Último. A última batida da máquina de escrever. As reticências. A frase longa. A frase curta. 

Dói-me os extremos. E nunca conseguir o meio termo. Dói em mim a poesia sem rima. O título. Os entretítulos e as legendas. As explicações. A palavra posta no itálico. A expressão que não se usa. A negação.

Dói-me o dia. A hora. A semana. O mês. Só não me dói o ano. O Natal. Não me dói o carnaval. Nem as onomatopéias. As cacofonias, sim. As sinfonias, não. Dói em mim as repetições. E depois as repartições.

Dói-me o texto inacabado. E o texto que não sai. Dói em mim o silêncio. Mas dói mais o silêncio dito, o silêncio cortado, o silêncio entrecortado, o que está entre o silêncio. A sílaba que não foi separada. A separação forçada.

Dói-me o mim. O eu. O nós. O nó. O só. 

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Notes from the couch XIX

Se eu soubesse fazer música, jamais faria frases. Jamais comporia textos. Há na música o que escapa das palavras, o que as palavras tentam em vão buscar, mas só conseguem transmitir uma tradução distante daquilo que é. As notas é que transmitem os sentimentos. Não há barreira alguma entre eles. Não é uma transposição: é o puro. Você ouve o que está ali, na melodia, e sabe exatamente o que ela quer dizer. Não em significado, mas em grau absoluto de sentimento. Você sente. As palavras são vistas. São lidas. Você interpreta. Na música não há interpretação. Não é uma questão de entender. É de sentir ou não sentir.

Há algo no som que entra pelos poros, que penetra na veia e percorre todo o corpo. Há algo no som que envolve a alma e a deixa leve. 

Falo de música instrumental. Falo de música clássica. Falo do choro do violino. Falo do grito do contrabaixo. Falo do canto exasperado do piano. Falo do braço arrepiado - não pelo ar condicionado do teatro, mas pelo grau da composição.

A música é o sentimento livre.
A palavra é o sentimento lapidado.

domingo, 6 de outubro de 2013

Quero me enterrar na terra com uma garrafa de vinho e ver se meu gosto melhora com o tempo
Minha vida é como a de uma borboleta, mas ao contrário:
nasço livre, voando, e morro no casulo

Assim como a borboleta, aceito a minha sina

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Há na geladeira
a última cerveja
E no forno
a última esperança
que não cresce