domingo, 28 de abril de 2013

Domingo

A cidade amanhece no vazio. Não na paz, com os raios de sol, ainda insuficientes para aquecer qualquer corpo às 7h da manhã. A cidade amanhece no susto. Como quem acorda de um pesadelo, mas não grita. Guarda nos olhos os homens de rua, enrolados em panos imundos, com cheiro de urina. Guarda na boca o medo. Guarda no rosto as olheiras de quem se levanta para trabalhar e caminha pelas ruas cheias de papéis que se dissipam com o vento. Guarda no silêncio as gargalhadas bêbadas de quem saiu da balada e espera no ponto de ônibus, os corpos femininos apertados em vestidos de cor preta, os pelos dos braços arrepiados com o frio.

A cidade transborda de vazio aos domingos.

sábado, 27 de abril de 2013

Que me desculpe quem disse "enquanto há vida, há esperança". Aqui em casa a gente (e não vou explicar esse "a gente") adotou o seguinte conceito: enquanto há vinho, há esperança.


Nós perdemos as recompensas.

terça-feira, 23 de abril de 2013

De manhã, quando abro os olhos e encaro o teto branco, a realidade acorda dentro de mim como se um balde de água fria invadisse os meus órgãos. Nunca me foi refrescante, nem no verão. Estou ciente dela, meus olhos a veem, mas a mente está ainda presa aos pesadelos – frutos de uma noite inteira de construções esculpidas à mão. Fico assim, dividida. A água não me repele. Quem me repele são os pesadelos. Preciso afogar a realidade e os pesadelos em uma xícara de café forte, antes que seja eu que saia afogada.


Todas as noites alguém pede dinheiro no trem - para o filho que tem intolerância a lactose, para comprar aparelho auditivo, comida, pagar a luz ou por não estar roubando. Não importam os motivos.

Os olhos dessas pessoas são tristes. Às vezes há ódio neles. Ou apatia. Ou indiferença. Às vezes os sapatos estão sujos e as calças limpas. As mães são negras e os filhos são brancos. Não importam as composições. E as mentiras. 

Pelo menos eles pedem só dinheiro. Tem gente que arranca a sua alma e nem te pede por isso.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

- Enquanto uma parte de mim quer ficar trancada dentro de si mesma, quieta, a outra...
- A outra quer ir contra, não é?
- Me reprime por ser assim, grita que eu não posso ser tão fechada. E então fico com dor de cabeça.
- Fica com dor de cabeça porque grita consigo própria?
- Não eu... ela.
- Ela que é tu?
- Sim e não.
- Quem ela é?
- Não sei que ela é. Ora, como hei de saber? Sei apenas que vive dentro de mim. Não é porque está em mim que preciso saber quem diabos é.
A realidade continua a escapar dos dedos. Atira-se ao chão como se ele fosse macio o bastante para não quebrá-la em pedaços minúsculos, impossível de serem restabelecidos. Talvez nem mesmo ela tenha noção do que faz. Toda a vez que isso acontece eu fecho os olhos e costuro uma fina esperança de que a realidade saia intacta. Porque a sua sobrevivência e os seus cortes dizem respeito à minha sobrevivência e aos meus cortes.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Ela sabe que não se encaixa. É tão nova e sempre soube. Os outros é que não sabem que ela sabe. Que sente. Que a cada sorriso contido, a cada olhar arregalado, a cada silêncio e passo arrastado na saída do colégio - contrastando com as crianças barulhentas - tenta entender, ainda que inconsciente. Não é preciso que lhe digam.
Talvez um dia falem. Enquanto isso, ela quer adivinhar, com uma curiosidade apática, nula, o que se passa. Pisa na vida como quem pisa em um chão movediço. Toma todo o cuidado possível. Só ri alto quando o êxtase queima-lhe a língua. Ou quando o desespero é apertado demais para caber no peito.
Não tem nome o que a aflige, por mais que, sem que ela escute, todos usem apenas um: sete letras, quatro vogais, uma palavra cuspida no tempo. Encontram eufemismos para fugir do rótulo. Ela foge de tudo, quando, autoritária, pede que se calem. Hoje não quer ouvir mais nada. Quem sabe amanhã possa acreditar em eufemismos.

- O Sartre diz que o inferno são os outros. Pra mim, a vida é o inferno sem você.

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Carta não enviada IV

Essa é para ser uma carta de despedida.
Há sujeira e farelos de madeira por toda a parte. Na verdade, desisti de lutar contra os bichos. Estamos todos ferrados, não é? Ontem à noite (ou há duas noites, perdi a noção do tempo) vi um louva-deus no lustre. O meu primeiro pensamento foi “como vou dormir com esse inseto aí?”. Não queria matá-lo, é claro. Ele parou na borda do lustre. Vi suas seis patas compridas, verdes, e seus olhos arregalados em uma cabeça pequena. Senti tanta dó dele! E acho que talvez ele tenha sentido de mim também. Por alguns momentos ficamos nos encarando. Depois, peguei um pedaço de madeira, fiz com que ele subisse em cima e o levei até a janela. O louva-deus não queria partir. Não queria deixar o quarto. Não queria deixar a luz do meu quarto. E uma vã esperança insiste em me dizer que ele não queria me deixar. Larguei a madeira no parapeito da janela e me deitei, ciente de que já não havia mais nada a ser feito. Não há.
E quando digo isso não estou falando sobre os bichos, sobre mim ou sobre você. Muito menos sobre nós. Estou falando sobre... tudo. Penso em dizer “abro outra cerveja”, mas acho que isso está ficando estúpido demais. Não quero soar como aquelas pessoas que escrevem só por escrever, criam um estereótipo, uma vida, um personagem. Meu deus, será que você tem noção que tenho tantos personagens – vivos – dentro de mim que estou pesada? E não é no sentido literal da palavra, não. Faz tanto tempo. E nem sei contar. Tampouco esperava o momento em que iria me sentar para escrever uma despedida. Era mais fácil antes, uma carta depois da outra, os seus olhos pequenos lendo as frases sem nexo, mas que para mim fazia sentido absoluto, mesmo que eu não entendesse o que escrevia. E eu escrevia.
Agora você vê. Quero dizer, não nos falamos, então não sei o que é que você vê. É modo de falar. Mas também não falo. Escrevo. É sempre mais fácil do que olhar nos olhos e articular as palavras, que, desesperadamente, tentam encontrar o caminho da garganta até a boca, e se perdem. Sempre se perderam, afinal. Ou saíram cuspidas, como um insulto. Não gostaria que pensasses que te insultei. Ou que fui arrogante. Por tanto tempo esperei abrir a caixa de e-mail e encontrar o seu nome lá. Não sei, não sei o que é que eu esperava que estivesse escrito, só queria vê-lo lá, em negrito, como não lido. Nem sei se eu teria lido, afinal. O que importa?
Quero me despedir. Entretanto, não sei como é que se faz isso. Nunca fiz. Sempre me esquivei e saí sem ser vista, em situações parecidas. Mas nunca houveram situações parecidas, sempre menos. Menos. Menos angustiantes. Menos doloridas. Até menos vazias do que isso que restou. Digo que restou. Seria hipocrisia da minha parte dizer que não guardo nada. É impossível que não fique. Amanhã tiro o lixo, limpo a casa e faço todas essas coisas que se deixa para o outro dia. Sim, estou desviando do assunto, porque, ao chegar ao final, meus lábios se contraem. Não sei como dizer adeus.
Talvez eu não diga. Porque, quem sabe, você nunca leia isso. Ou leia ao digitar no google “quatro faces”. Talvez você se pergunte “esse texto é para mim?”. Talvez a obviedade esteja estampada do início ao fim. Fim... que fim? A quem é que estou enganando? A mim. É isto que quero. Tantas vezes eu consegui. Por que não agora? Não sei se te engano. Talvez isso tudo seja apenas um engano.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Notes from the couch VI

Ainda há vinho e Bach – programado para tocar duas horas. O baixo chora uma letra sem palavras. Não choro com ele. Observo os tons do céu serem engolidos pelo negro. Um espaço na noite.
 
Moro em uma rua escura, em um prédio escuro, onde o único ruído é o som da televisão da vizinha surda. E a única luz é a que sai vermelha do lustre do meu apartamento, pela janela aberta. Moro em uma esquina em que se ouvem, durante o dia, buzinas de carros e ônibus. De noite, apenas o torpor dos gritos dos mendigos, dos bêbados e das prostitutas. Aqui não há cães. E a chuva anuncia com absoluta exatidão que horas vai chegar.
Vivo em uma cidade que não vive. Que atropela as horas de segunda a sexta. E que no final de semana repousa no silêncio e no vazio das ruas. Vivo em um bairro onde as pessoas sobrevivem. E seguram as suas bolsas quando esperam na parada de ônibus. E xingam o motorista, que, comovido com a loucura, apenas concorda com a cabeça.
 
Ainda há o frio que se aproxima abruptamente. Não fecho as cortinas. Nem tiro as roupas da cerca. Observo o vento dispersando os papéis da escrivaninha. Eles dançam no ar antes de pousar no chão.
 
Moro em um apartamento sete metros mais perto das estrelas. Mas nunca as vejo. Talvez se escondam atrás do prédio da frente. Talvez estejam exaustas. Talvez voltem no próximo verão. Moro em frente a uma avenida onde passam, insistentemente, ambulâncias e viaturas de polícia. Há noites em que não se pode dormir. A mente tece as histórias dessas pessoas que são levadas nos carros com as sirenes.
Vivo em um quarto cuja tinta da parede descasca. Às vezes pássaros entram pela janela, sentam em cima da caixa azul, no alto da estante dos livros, e me olham. Depois vão embora. Às vezes as lagartixas entram pela porta e ficam morando comigo por uns dias, até que eu peço para que se retirem, porque há horas em que a solidão é necessária.
 
Ainda há a fuga e o espelho sujo. Não limpo. É preciso que ele reflita o que há de mais verdadeiro ou esconda o que insiste em fugir. Não me esconde, apesar das manchas de pasta de dente.

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Notes from the couch V

Sirenes, buzinas, o som do ônibus que nunca para. Gostaria de poder descrevê-lo. Mas há tanto que ele está na minha cabeça que nem sei mais como é o próprio silêncio.
Gritos no meio da madrugada, risadas, o choro que irrompe no começo da manhã, e não é o meu, amor. Não sei de quem é. Dói mais o que não se sabe de onde vem, porque é perdido, porque se perde nos primeiros azuis claros do céu. Porque se perde quando chove e quando o tempo é uma incógnita que se transforma em surpresa ao longo da rotina.
O balanço das curvas dentro do vagão, os braços e pernas sufocando, as vozes exaltando a irritação, e de tanto que é exaltada acaba em água salgada, que escorre até a ponta nariz, cai dentro da boca e se mistura com saliva. E não é mar, amor.
Cigarros, histórias que se desenham nas esquinas da noite, saudade que em vão eu tento apunhalar, uma fuga que eu não chamo. Clamo. Aspiro um ar que não é meu, todo com cor sem tom, desmaiada, desbotada, e suspiro uma exaustão que não sai em som.
Não quero a rima. E ela vem. Reprimida. Com gosto de cerveja, de cansaço, de estrago. Quando quero, não vem. Forço para achar significado onde o que transborda é a ausência.
Acho que caminho dentro da noite, mas é ela quem caminha dentro de mim. Pisa firme, como se a cada passo pudesse cair, como se o chão fosse maleável, fino, em líquido. Não me deixa dormir. Ouço a sua tentativa de ficar viva, de ser ao menos sobrevivida. Mas quem sobrevive sou eu.
A luz da lamparina queima meus olhos. E cai alguma coisa lá embaixo, um ruído seco ao chegar ao chão. Ninguém grita. É hora de não gritar, de não questionar, de se colocar a par de si mesmo. É hora de não ser.
Recolho o caos, os cacos, os casos pela casa. Encontro a loucura embaixo da cama, com sorriso de menina travessa, os olhos suplicando para que eu não a coloque para fora. Como posso... se chove? Como posso... se ela se dilui em reticências, no lençol branco da cama, e se queima, e eu trago?
 
Quebrei o copo de vidro. Rabisquei o aturdido. Sobrou o cheio. E ficou sem ar. E fiquei sem mar. De novo.
Barbas Tortas, 10 de abril de 2013.

Querida Lissa,
em algumas madrugadas, o senhor Cortázar abre a porta do meu quarto (ainda não sei como faz isso, já que sempre a tranco) e joga para dentro uns coelhinhos. Livrei-me do ato nojento de vomitá-los. E esses coelhos jogados são diferentes. Há dias em que sinto uma afeição tão grande por eles que os alimento e os afago. Em outros, não os noto, esqueço-me completamente da existência dos bichos. E há momentos em que sinto asco ao vê-los e ouvi los no quarto, na cozinha e no banheiro, esbarrando em meus pés, nos móveis, nos livros.
Bem, pelo menos os coelhos vêm em tempo seco. Sinto receio em dizer "a tempestade principal nunca mais apareceu". Mas digo. Digo porque não estou encharcada, porque não me preocupo em sair com o guarda-chuva, porque... nem sei. Nunca houve motivo para a tempestade. E ela se foi dessa mesma forma.
Ocupo-me com os coelhos e com todas as outras coisas que não cabem nesta carta. Tenho escrito pouco, como podes perceber. Mas, quando escrevo, o texto parece suprir a ausência. O café me irrita, a cerveja me acalma e o vinho me faz dormir. Ainda durmo pouco, é claro. Esta é a minha sina.
Tudo mudou e nada mudou. Não sei como te explicar isso. A dor que eu sentia antes era de dentro para fora. Agora se inverteu. O mundo é uma ferida que dói - ouso te escrever esse clichê. Uma ferida que nunca cicatriza. Não sei se há algo que alguém poderia fazer. Grito em silêncio. Grito uma frase parecida com (...) e com " ". Parece-me que nada além disto pode dar conta do protesto. Que tudo o mais é vazio, que tudo o mais excede. 
Seria mais fácil se eu fosse musicista. Mas não sou. Não sei nem batucar na mesa no ritmo certo. Gostaria de falar em melodia. Só assim é que eu conseguiria encontrar um meio de dizer sem palavras. Tenho medo de usar as palavras porque os significados são amplos. A música não é interpretação. É sentido. É sentir. É sentida.
Já é outro dia. Já se passaram duas horas de outro dia. É sempre outro dia, nunca "o dia", compreende? Vou te dizer boa noite, mesmo que eu não durma e que tu não durmas. Talvez possamos imaginar que sim. E que os coelhos estão quietos. E que o mundo não dói. E que sabemos fazer música.

Com amor,
senhora M. Batata

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Há dias que sim. E dias que não.