sexta-feira, 12 de abril de 2013

Barbas Tortas, 10 de abril de 2013.

Querida Lissa,
em algumas madrugadas, o senhor Cortázar abre a porta do meu quarto (ainda não sei como faz isso, já que sempre a tranco) e joga para dentro uns coelhinhos. Livrei-me do ato nojento de vomitá-los. E esses coelhos jogados são diferentes. Há dias em que sinto uma afeição tão grande por eles que os alimento e os afago. Em outros, não os noto, esqueço-me completamente da existência dos bichos. E há momentos em que sinto asco ao vê-los e ouvi los no quarto, na cozinha e no banheiro, esbarrando em meus pés, nos móveis, nos livros.
Bem, pelo menos os coelhos vêm em tempo seco. Sinto receio em dizer "a tempestade principal nunca mais apareceu". Mas digo. Digo porque não estou encharcada, porque não me preocupo em sair com o guarda-chuva, porque... nem sei. Nunca houve motivo para a tempestade. E ela se foi dessa mesma forma.
Ocupo-me com os coelhos e com todas as outras coisas que não cabem nesta carta. Tenho escrito pouco, como podes perceber. Mas, quando escrevo, o texto parece suprir a ausência. O café me irrita, a cerveja me acalma e o vinho me faz dormir. Ainda durmo pouco, é claro. Esta é a minha sina.
Tudo mudou e nada mudou. Não sei como te explicar isso. A dor que eu sentia antes era de dentro para fora. Agora se inverteu. O mundo é uma ferida que dói - ouso te escrever esse clichê. Uma ferida que nunca cicatriza. Não sei se há algo que alguém poderia fazer. Grito em silêncio. Grito uma frase parecida com (...) e com " ". Parece-me que nada além disto pode dar conta do protesto. Que tudo o mais é vazio, que tudo o mais excede. 
Seria mais fácil se eu fosse musicista. Mas não sou. Não sei nem batucar na mesa no ritmo certo. Gostaria de falar em melodia. Só assim é que eu conseguiria encontrar um meio de dizer sem palavras. Tenho medo de usar as palavras porque os significados são amplos. A música não é interpretação. É sentido. É sentir. É sentida.
Já é outro dia. Já se passaram duas horas de outro dia. É sempre outro dia, nunca "o dia", compreende? Vou te dizer boa noite, mesmo que eu não durma e que tu não durmas. Talvez possamos imaginar que sim. E que os coelhos estão quietos. E que o mundo não dói. E que sabemos fazer música.

Com amor,
senhora M. Batata