quinta-feira, 18 de junho de 2015

Sem presente

"A cidade era como um enorme parque, do pé da colina até o mar, bonita de noite, as luzes brilhando como balões brancos, as ruas largas e cheias movendo-se em todas as direções. Não importava para que lado você fosse, a estrada seguia sempre em frente."Fante

No começo, as ruas vazias, prontas para serem preenchidas da melhor forma possível. No começo, a ausência de ausência, de displicência, de amargura, de gritos entalados na garganta. No começo, mesmo o cinza é azul, mesmo a chuva é agradável, mesmo as noites não são aturdidas por pesadelos. No começo, a leveza nos pés, a sensação de não ter importância para onde estamos caminhando ou por que estamos caminhando. Apenas seguimos o fluxo. No começo, dançamos qualquer música, e a cerveja, que desce gelada pela garganta, aquece o peito. O começo é uma tela branca que preenchemos com as cores que enchem os nossos olhos, sem medo de sujar a camiseta branca ou a pele já gasta. No começo, sempre sobra espaço na tela branca. E quando os espaços claros começam a faltar, pintamos por cima do que tinha sido pintado anteriormente, e vamos, sem querer, apagando um passado com o presente. E o começo já não é mais começo.

No meio, sentimos o cheiro de urina pelas ruas e andamos com o celular escondido no sutiã para que nenhum moleque possa nos roubar. Andamos por andar, sem mais pensar, apenas engolindo a nós mesmos a cada passo. Sempre mais para dentro. Nunca mais para fora. Porque no meio também ficamos no meio de nós mesmos. No meio, percebemos as olheiras que as pessoas carregam no trem, um fardo pesado demais para que o corpo fique ereto no banco mal cuidado e desconfortável. E vemos nossas próprias olheiras no reflexo do vidro. No meio, desejamos que algo nos tire dessa indiferença, mas não sabemos que algo pode ser esse. E a cerveja continua aquecendo o coração, mas precisamos cada vez mais de mais litros. E as músicas já não nos fazem dançar como antes. E os nossos olhos focam e desfocam os aviões que passam a todo instante no céu. E o nosso coração começa a desejar estar em qualquer lugar menos naquele em que nos encontramos. Mas nem sequer nos encontramos mais. E, quando não nos encontramos, já não é mais meio.

No fim, o mesmo gosto do começo, mas a mente já não consegue processar o que se vive, o que se sente, porque tudo se transformou em uma massa orgânica que pesa no estômago e mata a fome. Então perdemos alguns quilos, ganhamos uma tal de insônia e a boca com os lábios secos se fecham para qualquer tipo de diálogo. Percebemos que os livros estão cheios de pó, assim como o peito, e que uma faísca interior quer sair da apatia, mas já não depende mais do tempo, do espaço, do lugar, das pessoas. E olhar pra dentro vai ficando difícil à medida que vamos nos dando conta de que a única questão é o "eu". E já não podemos mais mudar o eu, nem o nós, nem qualquer pessoa do singular ou do plural. E então queremos colocar fora a tela que outrora foi branca, ir até o mercado da esquina e comprar outra para o ciclo recomeçar - na esperança que a felicidade inicial dure um pouquinho mais. Só dessa vez, que dure um pouquinho mais.