terça-feira, 11 de agosto de 2015

Pretérito imperfeito (do presente)

Quase seis meses e de repente já se foram quatro anos. Estou fora do tempo, embora as marcas no rosto atestem que ele têm passado pra mim. Em mim. É só fora, insisto em repetir quando me olho no espelho. Passo um creme. E me sinto mais a minha mãe do que eu. Mas a pele continua mais esticada e sem tantas sardas. (...) Tirando a paz e a estabilidade emocional, todos os outros sentimentos continuam acomodados no mesmo lugar. Não consigo criar fim pra eles. Porque talvez eu não tenha poder pra fazer isso. Não são como os bonecos de batata que eu fazia antigamente, que duravam alguns dias e depois ficavam podres. Os sentimentos não se esfarelam. Não infectam o ambiente com seu odor - porque eles não têm odor. Porque estão ali dentro, e não há nada que se possa fazer a respeito. Como se tivessem vida própria. Independem de mim pra existir. Não cutucam a parede do peito. Mas permanecem vivos, tão vivos que é por isso que estou fora do tempo. 

II 
Quando foi que ficamos tão responsáveis, dormindo e acordando cedo, não por obrigação, mas porque gostamos de sentir na boca - e no rosto - o vento da manhã. Café passado, pão com manteiga e as meias brancas no chão do apartamento recém comprado. A luz entra pela sacada e deixa um pouco mais viva a plantinha que fica ali, perto das almofadas que chamamos de sofá. A voz rouca do homem que sai do rádio faz uma crítica ao governo. De repente não somos mais aquelas duas pessoas que saíam no final da tarde pelas ruas de Porto Alegre procurando um bar mais barato do que no dia anterior, o dinheiro contado, a ressaca dupla, tripla, pesando nos olhos, os pés em chinelos velhos e o coração novinho em folha, pronto pra tudo, embora com receio de que alguém pudesse furar nossa bolha. Quando foi que ficamos tão a gente dentro de nossa própria bolha que agora chamamos de casa. Ninguém para exigir, pedir ou cutucar a ferida, apenas a criança chorando no andar de baixo e o pai gritando e a porta batendo, e os pedreiros levantando mais um andar do prédio em construção às 7h da manhã, bem quando decidimos colocar as pernas quentes pra fora da cama e encarar o sol, ainda morno. Porque aqui nunca chove. Nem faz frio. Essa cidade que não tem inverno, um eterno outono meio primavera, mas sem árvores secas ou cheias de flores. Essa estação que não tem nome. Um azul meio opaco, meio vivo. 

III 
Comprei um caderno vermelho, capa macia, folhas sem pauta, finas e amareladas. Terminei o antigo somente para começar o novo. E que alegria vê-lo terminado como começou: com paz e perspectiva de um começo doce. É tão bom poder costurar o próprio recomeço. E saber que poderei bordar nele o que quiser. E que se ficar gasto, manchado e pesado poderei colocá-lo de lado e partir para um novo. Não importa a cidade, o metrô, o mendigo pedindo dinheiro que nos cumprimenta na rua, o trajeto de casa pro trabalho, do trabalho pra casa, a mesa com a vaca e o telefone que não toca (que bom!) nem se chove ou se não chove. De repente parece tão simples colocar tudo na mala, afagar os gatos que não temos, e cair fora. De repente é simples. Tornamos simples. Pintamos as paredes, entregamos as chaves, pagamos excesso de bagagem no aeroporto, mas isso deixa de importar quando não há excessos no coração.

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

Estado de exaltação



Ainda é doce aquilo que não tem sabor, que deixa a boca seca e as costas doloridas. Mesmo no meio do caos, é doce. Não pode ser salgado aquilo que enche os olhos de água. Fico tentando me convencer que não pode. Não pode ser salgada a loucura conflitante, a loucura letárgica em uma sociedade acostumada a olhar os próprios sapatos cheios de merda. 

Dia desses saí pelas ruas sem medo de me perder, mas certa de que me perderia. É sempre estranha essa cidade que não me pertence - e que eu não faço o menor esforço para me tornar parte dela. Não porque a odeio, mas porque a sua indiferença não pode penetrar meu peito. A cada esquina, a cada calçada mal pavimentada, a cada olhar raivoso ou apático, a certeza de que a certeza nunca vai vir. Por nunca vir, por sempre ser essa espera sem uma consumação, é que tudo segue doce.
É tão fácil olhar pra dentro e ver esse poço sem fundo. E enchê-lo, pintá-lo da forma como cada um acha melhor. Quando me forço a sair, a ver, a sentir, a respirar esse ar pesado, percebo então todas as cascas quebradas, distorcidas, esperando uma mão delicada que consiga juntar os cacos e colá-los de uma forma que eles não voltem a quebrar outra vez.
Somos frágeis em nossas individualidades, mas quando todas as cascas cacos se juntam, parece que se forma uma camada grossa e extensa, impossível de se dissolver, de pura maldade. Como se os olhos não pudessem mais ver aquele que anseia por um um copo de cachaça. Ou como se fosse errado que aquele simplesmente anseia por copo de cachaça.
Digo que é doce porque não quero matar o único fio que ainda pende, o único fio que segura as pontas. É porque, se todos se perdessem, quem sabe conseguiriam sair de suas próprias indiferenças coletivas. Se somos frágeis em nossas individualidades, que sejamos sempre isso, e não essa maldade que entope a garganta e não sai em forma de vômito, mas de palavras.

Ainda é doce esse vazio, esse espaço que precisa ser preenchido com algo mais leve do que temos observado pelas janelas dos ônibus, dos carros parados no meio do trânsito. Se continuar a ser esse cinza, que pelo menos seja um cinza adocicado, sem esse cheiro químico que sentimos enquanto vemos o trem chegar pelo trilho - torcendo para que ninguém, num interim de sanidade, pule na frente dele.

"Pergunto-me se você consegue compreender os sentidos que não posso explicar. (...) No mínimo, se você for capaz de me entender, peço paciência; se não for capaz, peço perdão." Ginsberg para Kerouac



Notas de SP I

No dia do meu aniversário, o primeiro presente que recebi, quando coloquei os pés pra fora, foi um homem louco caminhando atrás de mim, com uma identidade na mão. Tive vontade de correr. E corri. Depois, tive vontade de chorar, de gritar, de pedir que não estourasse minha bolha. Mas a minha sanidade nunca foi, afinal, tão diferente da loucura de qualquer um.