quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

O dia em que faltou luz cinco vezes

Da porta para fora a temperatura era duas vezes mais quente e não havia motivo para esperar que a chuva passasse, como as pessoas do trabalho que se espremiam no hall de entrada. Também não havia motivo para abrir o guarda-chuva para se encolher embaixo dele. As barras de sua calça ficariam molhadas e sujas de qualquer forma.
Quis sair na chuva, uma ânsia de correr para qualquer lugar, mas nunca chegar. Ficar correndo e correndo sem se cansar. Deixar que a camisa azul colasse no corpo, que a calça social preta pesasse, que talvez nem o cinto aguentasse o peso do tecido. Não se importar com o celular no bolso, com a carteira, com as roupas que havia esquecido na cerca, em casa.
E, correndo, notou como estava cansado, como havia bebido muito café. Seus olhos ardiam. De sono. De fome. De um sentimento que não encontrava palavra para simplificar. De uma ressaca. Mesmo sem força, os pés continuavam, um na frente do outro, sem jamais tropeçar. Sequer sentia o próprio peso. Sentia apenas uma gota de cada vez caindo no seu rosto grudento pelo calor. E, junto com cada uma, caía também uma quase paz, um quase alívio, uma quase tempestade. Como eram bonitos os tais de temporais. 
Na sua mente, as histórias vinham sem interrupções, rápidas demais para que conseguisse digerir, rápidas demais para que pudesse tomar notas, colocar vírgulas ou pontos, tentar decorar para lembrar em casa. Histórias que não lhe pertenciam, que não eram de ninguém, tampouco. Histórias que nasciam e morriam, que renasciam, costuravam-se umas às outras e depois se debatiam, como se constituíssem um monstro sem face.
Conseguiu se desvincular da própria vida, do próprio mundo, para ver tudo distante. Para ver os dramas reduzidos a frases curtas. Vomitadas. Amassadas. Que escrevia em um caderninho preto. Às vezes apenas engolia. Vendo os fatos distantes, percebeu como o próprio desespero era patético, ele que nunca fora de medir o desespero pelo tamanho do fato. Viu a sua vida como aquelas histórias que inventava. Que não sabia de onde tirava. Mas tirava. 
Sabia que se parasse de correr, tudo aquilo também pararia. E foi por isso que continuou correndo. Foi por nada daquilo fazer sentido que quis que permanecesse, que cuspiu os motivos e os deixou para trás, em uma pedra cinza, suja, molhada pela chuva. Quando pensou no seu próprio nome, estranhou. Quando viu o próprio reflexo na vitrine de uma loja, pensou não saber o que era aquela pele que o revestia, aquela expressão arrasada no rosto, os olhos sem qualquer brilho, sem qualquer reação. Entendeu que já não era aquilo que esculpira lentamente, com cervejas, livros, músicas e cigarros. Que nunca seria qualquer coisa, afinal. Ou que seria a confusão, a mistura de insônia, dualismos, excessos e faltas. Mas que continuaria sendo, de qualquer forma. E era esse verbo o único que restaria, que o arrastaria, que insistiria nessa vida que há muito não pertencia à realidade, de tanto estar mergulhada nela.
Se ao menos pudesse ver sempre tudo de fora. Se pudesse sair de dentro de si, de dentro do que havia criado, de dentro da casca. Se pudesse ficar correndo na chuva. Talvez corresse até ela. E esquecesse que há quatro meses não se falavam. Talvez comprasse uma garrafa de conhaque, como no conto do Caio Fernando Abreu. E fosse. Porque era assim que se sentia: aquela pobre estopa desgastada. Mas já não poderia lidar com uma porta fechada, com ela não atendendo ao telefone. Não poderia lidar com qualquer coisa, e o pior de tudo era ter consciência disto.
Aos poucos os pingos foram ficando finos, até, enfim, pararem de cair. Com a tempestade cessando, ele também parou de correr. A sensação de ver a sua vida de fora foi substituída pela certeza de que estava muito longe de casa. Mas já não sabia se era fisicamente ou mentalmente. E talvez não sabia se isso fazia alguma diferença. Porque depois de pegar um ônibus e chegar em casa, as paredes o engoliriam novamente. Ou ele próprio se encheria de conhaques, runs, cervejas, ressacas, ausências e reticências.

"Eis o que somos, a maioria de nós: prisioneiros de nós mesmos. Dificilmente há uma dúzia de homens, numa geração, capaz de romper o casulo." Henry Miller