quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Conto fantasma


É aquela cidade pequena. Mas reluta em chamá-la de maldita. Porque as palavras sempre vão parecer mais do que são. É aquele grupo de pessoas, o único, pois não se pode dividir os moradores em ovelhas negras ou pretas. São todas da mesma cor, e não importa qual, uma vez que as características inibem qualquer outra classificação. Sempre pensou ser ela a preta, porque nunca concordou com a maioria. Mas descobriu que raramente a maioria está certa. E que já não faz parte daquela cidade. Nunca fez, afinal. Desde que choveu no natal de 2007. A cada gota fina, a certeza de que jamais saberia o que fazer com aquelas palavras, a não ser colocá-las em uma página cinza com vermelho. E por colocar lá, todo dia, sem faltar um, é que abriu o coração. E abrindo deixou espaço para que pisassem nele com botas pesadas. Para que dele fizessem assoalho de casa abandonada. E depois o abandonaram também. 
Não entendia. Aquele grupo de pessoas sem cor. Porque talvez ela tenha usado palavras como 'maldita'. E nunca foi a ironia, a intenção de superioridade. Apenas a certeza de que estava sendo massacrada. E com palavras tentava se salvar. Mas jamais funcionaria. E depois de não funcionar foi que se fechou dentro de casa, colocou-se dentro da máquina de lavar, ficou um tempo girando de um lado para o outro, e ficou secando por um ano, em um lugar seguro. E só depois de seca pode sair.  Estando limpa, correu para o mar de julho, antes que alguém a visse, e depois correu para outra cidade. Para não voltar.
Correu sem guarda-chuva, sem as roupas de inverno, sem o quadro preferido. Correu com os livros e com os contos e com todos aqueles escritos, desde o natal de 2007, dentro de uma caixa marrom. Correu sem sapatos para o mau tempo, prevendo que encontraria sol. E mar. Encontrou os dois dentro de uma paz que desenha todo o dia na parede branca do quarto, quando acorda, quando vai dormir, quando não consegue dormir, quando bebe demais e fica tendo pesadelos sem começos, mas pesadelos que se findam quando a escuridão do quarto minúsculo é assassinado pela claridade da manhã.
É aquela cidade pequena. Que enche de saudade e de repugnância. Uma nostalgia que não tem rima. Uma analogia não feita. Uma ressaca, mesmo sem ter bebido, que faz a cabeça doer quando chega no pórtico. E olha aquelas ruas que caminhava nos domingos à tarde, quando ainda suportava o calor, quando não importava quantos quilômetros precisasse andar, desde que tivesse uma chegada. Ou uma chuva durante o natal. Mas agora o que importa é o caminho. E a música escolhida na jukebox. E a cerveja mais barata. Fica mesmo é com a cabeça desprotegida, para pegar chuva, para pegar sol. Porque agora não precisa mais ficar na máquina. Tampouco necessita ficar secando em um lugar seguro, durante um ano.