sábado, 5 de novembro de 2011

"O vinho está quase no fim. A manhã vem vindo, não sei se conseguirei continuar contando." Abreu

Preciso ouvir música clássica, pensou enquanto se equilibrava em cima do meio fio, no caminho para casa, o sol se pondo, os óculos abafando os raios quentes. Mas no ipod apenas o de sempre: MPB, country e instrumental. Nada de Beethoven. Nada de Arvo Part. Nenhuma melodia no mesmo nível do cansaço.
-Excesso de dor é a anestesia mais eficaz. Não sinto a dor e, entretanto, sei que as feridas são visíveis. Excesso de dor é anestesia porque é loucura. Excesso de dor é melhor do que pouco, do que quase nada de ferimentos.
E como não havia música clássica, continuou se equilibrando em cima do meio fio, os pés dobrados como se estivesse de sapatilha de balé, mas neles apenas o mesmo all star encardido, tão velho que nos dias de chuva a meia de ovelhas se encharcava. Andava no mesmo ritmo e na mesma perfeição de quando tinha quinze anos. Quase se esqueceu do tempo. Quase se esqueceu de si mesma.
-O problema da escassez é o alarde que ela faz, sempre gritando mais do que o próprio tamanho. O problema da escassez é que ela não se aplica à dor. E a dor, que não pode sucumbir depois que nasce, se desalinha do corpo, da mente, dos fatos, quando alguém cita a falta.
Era mais fácil andar no trem, ele que se equilibrava tão bem nos trilhos. Era mais fácil se equilibrar de pé no trem, os joelhos dobrados para que o corpo não se enganasse na primeira freada brusca. Mas entre a segurança e a possibilidade de uma queda, era o masoquismo que confirmava a escolha.
-Só existe capitular no meu texto, pois logo depois encerro com o ponto final. Pulo até a introdução. Pulo do começo ao fim. É mais difícil terminar do que começar, apagar do que escrever. Todos os sentimentos se desenham, agora, nas nuvens que eu não consigo enxergar.
Os óculos pesando no rosto, o rosto quente, quase febril. Uma sacola na mão, cinco livros dentro. Sequer uma linha do que está escrito neles será lida nos próximos dois anos. Não há tempo. Não há vontade. Simplesmente não há qualquer coisa. E os pés, em cima do meio fio, cada vez andando mais rápido, a possibilidade de queda certeira, as mãos raladas já era uma quase realidade.
-Não quero porque sentir me basta. E cheia de sentimento não posso fazer outra coisa a não ser renunciar. Renuncio os começos porque estou cheia de meios que não foram excluídos. Renuncio a escassez porque o excesso me acalma. Só não renuncio a dor que é oportunidade de loucura.
Quase como uma bailarina, era assim que podia ser vista. Mas não sabia. Inventava a própria dança em cima de pedaços de concreto que se ligavam por cimento. Os lábios murmuravam a música clássica que não conseguia ouvir. As mãos digitavam no ar, tão rápidos eram os movimentos que se perdiam no final da tarde.
-Pois já não sou. E esse é todo o peso que eu posso carregar. Não renuncio o peso porque ficar leve me faria uma sacola no vento, sempre caindo e sendo erguida, sempre estufando e sempre reduzida a milímetros. A matéria estável pode não combinar com o abstrato inconstante, mas desequilibra. E existe desequilibro que não encanta?