terça-feira, 7 de outubro de 2014

Maria não vai



Bebe um café. Depois bebe outro. Pensa em cigarros. Não, está velha demais para isso. Espia pela janela os carros passando na avenida. Lembra que não dorme direito há cinco noites. A insônia se transforma em lágrimas de nervosismo, mas elas não caem para umedecer o rosto seco. 

- Aí está o dia. Outro dia.
Murmura para si mesma.

E pensar no dia é como cutucar uma ferida na pele, uma ferida que não cicatriza. É necessário que dona Maria liste tudo o que precisa ser feito: limpar o banheiro, comprar pão, tirar o lixo, arrumar as roupas por cores, fazer a cama, cozinhar feijão, estender as roupas brancas, assistir a novela das seis, fazer mais um bule pequeno de café, colocar o pão na torradeira, assistir Jornal Nacional, pensar em quem vai votar no segundo turno.

Se não fossem as listas, Dona Maria estaria perdida. Mais perdida do que está, assim, cinco noites quase sem dormir. E se dorme, sonha que está sempre atrasada. Mas atrasada para quê? Para a vida que esqueceu de viver. Dona Maria não pensa nisso. Faz listas pra não pensar. Proferir mentalmente que esqueceu de viver é aceitar a solidão que ocupa o apartamento pequeno na zona norte. E aceitar a solidão é prolongar a insônia. Um ciclo. 

O presente de dona Maria está em constante repeat. Às vezes a melodia muda por alguns segundos, quando encontra sem querer, pelo corredor, um dos vizinhos idosos. Eles sempre perguntam se vai chover. Se chove, perguntam se vai fazer sol. Dona Maria murmura qualquer coisa. Está desacostumada a manter uma conversa. Prefere não encarar olhares, apertar mãos enrugadas, mostrar os dentes amarelados. Prefere tentar manter um passado de pele de pêssego, dentes de leite e olhos ansiosos. Mas dona Maria esquece que esse passado quase não existe mais. Foi engolido pelo presente, sempre em constante repeat

No chá das cinco, se dá ao luxo de comer geleia de amora. Lembra da avó. Lembra das panelas grandes e do cheiro da sua fruta preferida impregnado em toda casa. Lembra da casa, do sol entrando pela vidraça, dos sapatos brancos, do pão caseiro, do limoeiro, do som da carroça passando na estrada embarrada. Uma das únicas memórias que ainda se mantém. A música do rádio irrompe o pensamento. 

Vida, minha vida. Olha o que é que eu fiz. Deixei a fatia mais doce da vida. Na mesa dos homens, de vida vazia...

Desliga o rádio. Limpa a mesa. Não quer ter certeza de que divide com a solidão o espaço oco de um futuro que não vai existir. Liga a televisão. Logo começa a novela. Outras vidas pra ocupar a vida que dona Maria não teve.