domingo, 26 de janeiro de 2014

O fim do que nunca acaba



O barulho do tic-tac do relógio grande, postado no meio da sala, disputa a trilha sonora da casa com o som que sai da televisão ligada, escondida em um canto da cozinha. Nem um nem outro consegue estancar o silêncio. Fazem-no pesar ainda mais. É como se gritassem a falta de sons humanos. Como se denunciassem o cenário alterado da casa de madeira, pintada de verde, com venezianas brancas. 
O vento entra pela janela e corta o tic-tac, mas faz balançar o calendário novo, recém pregado à parede, o rosto de um bebê estampado na página, o mês de janeiro logo abaixo da escrita 2014 - em letras de forma. É como se a criança desse vida ao mês. Mas há tudo no mês de janeiro, menos vida. O calendário divide a casa, mas não divide o sentimento. De um lado, o quarto vazio de menino, ainda organizado. Do outro, a sala, o cômodo onde Maria Aparecida passa a maior parte do tempo, calada, ouvindo e vendo o silêncio no computador do filho, ainda acomodado no canto direito.
Maria Aparecida não sabe o que fazer com os dias. Não sabe o que fazer com o grito que sobe pela garganta e sai molhado pelos olhos. Não é necessário que mencione o vazio. A casa toda imerge no vazio. Não é só o quarto com a colcha azul que guarda os espaços que nunca mais serão preenchidos. As tábuas de madeira, gastas, que revestem quase toda a residência, se fecham. É como se o tempo tivesse parado. O chão nunca mais será tocado por passos apressados de crianças, por pulos seguidos de gritos finos e alegres. O sofá vermelho, pequeno e antigo, não sentirá o calor de mãos sujas de chocolate. Nem receberá manchas.
Nos primeiros meses de 2013, Aparecida percorreu as ruas com uma foto do filho de 19 anos. As mãos mostravam para os desconhecidos aquele menino que não saiu do seu corpo, mas do seu coração. Os lábios, molhados pelas lágrimas que escorriam dos olhos aflitos, contavam que ele não deixou a boate Kiss naquele 27 de janeiro. Errou o caminho e acabou no banheiro, junto à pilha de corpos que sairiam dali para o caixão. E o que faria ela. O que faria ela que sempre desejara ser mãe? Que nunca pudera ter filhos? Que adotara o menino e que agora havia ficado sem o único filho. E sem o sonho de ser avó.
A ausência se espalha por cada cômodo da casa. Está nos brinquedos guardados para os netos que não vão nascer.  Está no telefone que não vai tocar. Está nos cadernos da universidade que não serão mais folheados. Está na guitarra recém comprada que não produzirá melodia alguma, exceto a de completo silêncio. Está no almoço que não é mais preparado, porque já não há mais quem o coma.
Maria Aparecida não percorre mais as ruas para mostrar o rosto do filho aos desconhecidos. Mas dentro da própria casa, ainda procura os objetos de Augusto. Conta a história de cada um, automaticamente, sem que seja questionada. Remexe nas fotos - já amassadas de tanto serem pegas com as mãos úmidas de pranto. Anda de um canto a outro, as palavras jorrando do peito, as lembranças apertando o coração - que ainda comporta uma dor que não cabe direito ali, que não cabe, de fato, em lugar algum. Mas quando sai de casa, os traços do rosto se alteram. É como se ela mesma desenhasse uma outra Maria Aparecida. Esta, menos frágil, a voz mais firme, os olhos menos úmidos, o andar mais duro e pesado. Uma Maria Aparecida que sai em busca de justiça, mesmo que não saiba direito em que lugar da cidade encontrá-la. 
Os traços alterados delineiam uma mulher que parece mais forte, mas que de forte só guarda a saudade e a única certeza que tem: ainda é mãe. Sempre será mãe. Apesar de. Ainda que. Mesmo que. Nunca deixará de ser mãe. Uma mãe que carrega a perda do único filho, mas que carrega também a perda da continuidade da própria geração. 

Maria Aparecida tem nome de Santa. A cidade também. Mas de puro, em Santa Maria, só existe a dor, que há um ano ocupa as casas, as ruas e os rostos. 

Foto: Carlos Macedo