sexta-feira, 14 de outubro de 2011



Descendo a escada longa de pés descalços, as unhas com esmalte vermelho descascado, os olhos úmidos, os dentes brancos escondidos, as orelhas sem brinco, o cabelo liso demais, a saia vermelha amassada, os sonhos rasurados e jogados no lixo, todas as possibilidades não passando de meras possibilidades, a insônia ao lado da cama, a cama desarrumada, os lençóis brancos sujos de batom vermelho, a janela do quarto sempre fechada, a cozinha toda inutilizada, os livros cheios de pó, e alguma coisa... alguma coisa chamada sentimento saltitando dentro do peito, fazendo doer, fazendo gritar, o mundo todo azul desmanchando... desmanchando e escorrendo pelas ruas cinzas, tudo se diluindo. E a menina descendo a escada longa com as mãos cheias de jornais antigos, a mente sussurrando qualquer música clássica lenta, uma valsa, duas valsas, descendo mais rápido, a luz apagando, não é dia, não é noite, não há canto dos pássaros nem lua nem sol nem árvores nem vento nem... Há apenas o nada ecoando e uma caixa cheia de certezas partidas e expectativas anuladas. A máquina canta quando as tempestades caem. Mas, ultimamente, não há chuva e as cervejas descem rasgando o peito, ao lado da solidão. Mas descem. Descem e permanecem no estômago frágil, quase de mentira, quase desenhado para não durar. E depois de descerem mandam uma mensagem para os olhos e eles se fecham e ninguém fala. Há um silêncio completo. E ela sobe as escadas, os pés ainda nus, o mesmo repertório, os degraus imaginários, a vida invisível, a mão segurando no corrimão de madeira, que cede, cede até que o seu peso é quase tão insuportável quanto a perfeição.