sábado, 22 de outubro de 2011

"canções como as que nenhum rádio toca
toda a tristeza, escarnecendo em correnteza." Bukowski

A camisa azul amassada, as unhas não cortadas, a calça arrastando no chão, uma marca de chocolate no joelho. O cabelo preso em um coque bem alto, todos os fios emaranhados por causa do vento, e desbotados pelo sol. Dentro da mente, a loucura escrita com traços retos demais, delicadamente, em preto. Não há nada a ser feito. Não há nada a esperar, desejar ou procurar. Apenas o desespero corrompendo o brilho nos olhos e se transformando em obsessão. E as olheiras no rosto rimam com o peso dos fatos, refletivos em um brilho que, de tão distante, é bonito.
Os passos sequer são ouvidos quando ela caminha. A sutileza quase ocupa o lugar da calma. E os atrasos constantes são a única prova de que não há por que se esgueirar. O canto da máquina ecoa dia e noite, mesmo que distante, no inconsciente. As notas são altas demais para deixá-la dormir. E, quando a melodia se torna silenciosa, por míseros segundos, os pesadelos roubam o sono de menina doce. As mãos não podem escrever. A mente não pode pensar. Os sentimentos ocupam todas as entranhas, as brechas, as gavetas trancadas e empoeiradas, e pesam tanto que o corpo sente o que o interior já não pode, de tão anestesiado pela dor.
Alice não chora porque o estoque se esgotou. E, estando esgotada, não nota que a lucidez é o único perigo. O sono roubado não lhe causa prejuízo algum, exceto a certeza de que os dias se tornam mais longos e as noites somem quando a lua a abandona. Não há abandono maior do que estar preso em um mundo que não é o seu. Não há angústia maior do que ver-se crescer dentro desse mundo pequeno e ser achatada pela certeza de ficar preso a ele. Alice não chora porque as lágrimas aliviam. E o alívio é a confirmação de um fim inventado. Sabe que a previsão é o único pecado que pode cometer.
Todo o dia que amanhece com sol, amanhece com gosto de chuva. E toda a noite que amanhece sem estrelas, amanhece com gosto de adeus. O pior de sentir o gosto de adeus é saber que não se pode ir, que os pés estão presos ao chão, que os fatos são imutáveis e que o único fim é aquele começo, no final da rua, na mesa, sozinha, com connhaque para engolir a confusão.