quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Notes from the couch XXV

Acho que é o calor, eu te digo. Ela está cansada. Diz que trabalha todo dia até as 20h. Mal vê o dia. Ele nasce e morre enquanto está naquele escritório sem ventilador ou ar condicionado. Ironia não ter ar condicionado em uma loja que o vende. Acho que agora ela me entende quando eu quis ir embora porque ficava tempo demais naquela sala. Acho que agora ela entende quando eu dizia que fazia quase 40 graus naquela sala. Não queria que ela entendesse, se isso significa sentir na pele o que foi. 
Chego em casa e tomo um banho gelado. O chuveiro dá choque. Ela chega em casa e ouve os gritos, os resmungões, vê cara feia e louça suja na pia. Ele me espera com a minha música preferida e a comida quase pronta. Não tenho do que reclamar. Mas escrevo para ela reclamando dos mosquitos que não me deixam dormir. Ela me escreve as mesmas coisas sobre os mesmos dias. E quando me diz, pelo telefone, sua voz ecoa na minha cabeça. É a mesma frase e a mesma voz dos últimos vinte anos. Apenas algumas rugas a mais, alguns quilos a mais. Mas a balança nos engana: mostra que estamos mais magras. 
Não lhe digo nada. É final de ano, penso. Nem parece. Lá, parece. As ruas estão enfeitadas desde novembro com papais noéis de pano. Aqui, enfeite algum nos postes. Só o meu na porta, uma fita mimosa vermelha com duas cabeças de Barbie e laços. Na casa dela, o mesmo pinheirinho de todos os últimos natais. Eu lhe disse que nesse ano quero fazer a ceia, que terá champagne, música e o arroz preferido dela, mas não lhe disse que não haverá presentes. Não tenho dinheiro. Bebo menos cerveja, mas não é por isso. Não sei por que é. 
Vai acabar de novo. Nem vi passar. Acho que nem ela viu. E novamente as mesmas promessas para os próximos anos. Uma pitada a menos de expectativa. Uma pitada a mais de realidade. Menos ilusões para carregar de um ano para o outro. Assim, vamos mais leves. Ela e eu. Nós. Eu e ele. Eu, ele e ela. Sem o outro ele. Talvez um dia, acho que ela ainda pensa. Não penso mais.

"Tudo era para amanhã, mas o amanhã jamais chegava. O presente não passava de uma ponte, e nessa ponte eles ainda gemem, como geme o mundo, e nenhum idiota jamais pensa em explodi-la." Henry Miller