quarta-feira, 2 de abril de 2014

A parte que me cabe

- Feliz Natal.
- Claro. Me fale de você.
- Passo.
- Muitas histórias?
- Muitas, e ao mesmo tempo tão poucas. (Bukowski)

Um dia eu cheguei em casa da faculdade e ela estava no meu quarto. Tinha olhos muito arregalados e um corpo branco quase pequeno. Parecia morta de tão parada. Talvez tenha se assustado com a minha presença, mas era eu quem devia me assustar. Afinal, era um ser estranho dentro da minha casa. Me perguntei como havia entrado e por que havia entrado. Logo percebi que não encontraria essas respostas, então ignorei todos os pressupostos e a aceitei. Finalmente a aceitei. Uma companheira para os dias ociosos. 
Pensei que ela devia ter um nome, já que seria a minha parceira de quarto. Escolhi Josefina porque foi o primeiro nome que me veio à mente. Me fazia lembrar de rugas e da cor rosa. E também me fazia lembrar de um passado que eu nunca tive. Por alguns dias eu cheguei do trabalho e nós conversamos. Quer dizer, eu falava. Ela nunca emitiu som algum. Era calada na sua solidão, uma solidão que compartilhava comigo da mesma forma que eu compartilhava com ela. Eu contava o meu dia de trabalho e ela assistia meu ritual antes de ir para a aula. 
Nos dávamos bem, eu e Josefina. Ela escolhia lugares peculiares para descansar, como perto da cortina ou no canto do quarto. Nunca a questionei. Sempre a deixei bem livre. Só pedi, desde o primeiro dia, que ficasse longe das pinturas de Monet, embora tenha notado que ela preferia as paredes brancas. Fomos amigas, eu acho. E dividindo o apartamento com ela pude tirar o peso que assombrava a minha consciência: o de ter empapado de veneno uma das suas, antes de tê-la jogado pela janela. Bem, naquele tempo eu não sabia lidar com desconhecidos (não que agora eu saiba). Mas foi uma situação muito delicada.
Viver com Josefina foi a chance de me redimir por ter tentado matar a sua irmã. E eu realmente acreditava que havia sido perdoada. Até que um dia cheguei em casa exausta da aula, procurei-a por todos os lados e não a vi. Primeiro pensei que ela tinha me abandonado, mas depois me dei conta que não havia visto em um lugar: nas pinturas do Monet. E lá estava Josefina, calada, o corpo branco marcando território. Enchi-me de pesar. E depois de dor. Porque ela ter cruzado o limite que eu havia imposto significava o fim da nossa convivência. Abri a porta e pedi que se retirasse. Não a chamei de Josefina. Chamei-a de lagartixa, o que ela voltou a ser quando cruzou a porta do meu quarto e voltou para a rua. Agora, sempre que vejo uma lagartixa pelos corredores do prédio, penso em Josefina. E em como fomos felizes dividindo os nossos silêncios.