Tentativa de uma explicação - por Pedro V.
Foi há pouco tempo que isso aconteceu. Primeiro os carros
pararam de buzinar, depois as luzes se apagaram e, por fim, o último ruído que
se pode escutar foi uma batida aguda, como se uma última badalada de um sino
enferrujado tivesse tocado. Soube que depois disso não conseguiria escrever frases curtas e coerentes. Sei disso. Não que tenham me dito. Eu apenas senti. O que
ninguém talvez tenha percebido é que não foi a luz que terminou. Foi a música.
Ela morreu. É difícil escrever sobre isso, mas dizem que quem presencia algo
consegue escrever melhor sobre o que aconteceu. Nunca acreditei nisso, mas
estou tentando.
Ok. Vamos começar de novo.
A música morreu há exatas duas horas, trinta minutos e vinte
e dois segundos. Eu não estava tomando banho ou fazendo qualquer coisa clássica - como geralmente acontece nestas horas. Estava aqui mesmo, sentado diante da
minha mesa – que é alta demais para se escrever, já aproveito para dizer –
olhando para fora. Um pássaro cinza pousou no telhado, no prédio ao lado – que é
mais baixo que este – e virou rapidamente a cabeça quando um som semelhante a
TUM (nada é mais difícil de reproduzir do que onomatopeias) ecoou pelas ruas.
Desde que moro aqui – cinco anos e quatro meses – os carros nunca pararam de
passar. Dia e noite. De segunda a sexta e nos finais de semana. Feriado e dia
normal. E pararam há pouco, por cinco segundos.
Tudo isso porque a música morreu. Essa frase, curta e
pesada, esclarece todo o resto. Mas parece bruta, não? Áspera. Forte. Ninguém
havia pensado que isso pudesse acontecer. Isto é, que ela fosse morrer algum
dia. E não foi uma morte lenta – para que nós pudéssemos, aos poucos, aceitar. Sequer foi um ataque. Ela apenas parou. Como se estivesse cansada de
existir. Como se nunca tivesse desejado viver. Não avisou ninguém. Não deixou
carta de despedida. Nem mesmo um bilhete. Nada. Interrompeu o dia, o tempo e a
rotina. O que é mais difícil do que parar estes três elementos – e juntos? Não
importa se por cinco segundos ou cinco anos.
Vi o menino do 506 saindo de fininho pela porta dos fundos
do prédio. Tinha uma caixinha de madeira na mão, os olhos estavam vermelhos, as
mãos tremendo. Quando ele saiu, acho que sabia. Sabia que ela havia morrido. Não
levou seus instrumentos. Nem a flauta. É claro que ele sabia! Porque o
toca-discos – que tocava Charlie Parker – também silenciou. Bem naquela hora.
Ora, sei que tocava Charlie Parker porque estava na janela escutando. Sempre pegava emprestada a música que ele colocava no toca-discos. Claro
que sem ele saber. E dez minutos depois que o menino saiu, a síndica bateu em
minha porta pedindo ajuda, gritando que precisava de ajuda, que o 506 estava
pegando fogo. Quando desci, apenas as cortinas e a cama queimavam. Tudo por causa
de uma vela, em frente à vitrola.
Meus pêsames. Para mim. Eu que vi tudo aqui do sexto andar. Eu
que não vou mais ter Tom Jobim para cantar antes da meia noite, antes da
insônia. Eu que não vou ter Parker madrugada adentro. Eu que não poderei tocar
desafinadamente – e nem de outra forma – a gaita que herdei do meu avô. Eu que
jamais mexerei a minha cabeça no ritmo da música, quando o menino do 506 abrir a
janela e ligar a vitrola. Ele foi embora. Não vai abrir a janela. Eu que não escreverei mais histórias sobre
bailarinas.
É isso. A música acabou.
Acendo o meu último cigarro.
Acendo o meu último cigarro.
"cara, cara, esse mundo é mesmo muito engraçado", disse ele. "nós temos de tudo mas não temos nada." Bukowski