domingo, 25 de março de 2012

Barbas Tortas, 21 de março de 2012

Querida Lissa,

o barco está furado há tanto tempo que não encontro a resposta quando me pergunto como foi que ele furou. Talvez o papel estivesse se desgatando, lentamente. E fiz assim: joguei todas as esperanças no mar para que ele ficasse mais leve, para que sobrevivêssemos. Também lancei na água limpa os alimentos, as certezas e as garrafas de vinho que eu costumava esvaziar quando a insônia aparecia. E então, volta e meia, eu sentava na beirada do barco, deslizava a mão direita na superfície do mar, sentia o sal queimando a ferida aberta do indicador e pousava o queixo na borda. Às vezes você dormia, Lissa, e não me via calma e pensativa observando as ondas que não existiam.
Uma vez por mês, e sei que era assim pois eu ainda tinha noção de tempo, salvava uma daquelas esperanças. Ali, no meio daquele oceano, elas pareciam ainda mais perdidas do que eu: sempre cansadas de nadar, de manter-se respirando. Não morriam nunca, compreende? E eu, com o coração mole demais, acabava esticando o braço em direção a elas, dizendo mentalmente ‘irei resgatar uma, apenas uma’. Precisava me convencer daquilo. Quando a tal regressava ao nosso forte, o sol voltava a aparecer naquele horizonte, o meu corpo ficava imediatamente tomado por uma energia, que não era consequência de alimento, pois não tínhamos comida, e sentia necessidade de remar e remar. Nessas ocasiões eu dizia para mim ‘é só uma esperança, não se anima, morte de possibilidade é pior do que as outras’. Mas me animando eu te animava e aquilo parecia o melhor a ser feito.
A última delas se foi, hoje. Quando a retirei do mar, há duas semanas, com todo o cuidado possível, sabia que não haveria outra. Por isso é que eu a ajudei a se secar, trocar de roupa e descansar, mesmo tentando mentir para mim que não me importava. Ela se comportou tão bem! Por algumas noites, enquanto velava o teu sono, pensei que ali estaria o que você chamou de cadernos e lençóis novos. E foi em uma manhã de neblina, exatamente como tu definiste a tua esperança, que ela partiu. Tudo o que temos, neste momento, é um barco furado, mas vazio. Podemos deitar no chão, aproveitar o espaço, discutir se a lua cairá ou não, escutar a água batendo na lateral do barco. Há coisa melhor do que sobreviver sem possibilidade de frustração?
Desculpe se não fui clara, Lissa. Mas a morte desta esperança não foi ruim. O gosto amargo na boca, que é passageiro, dará lugar à paz de não mais esperar, de continuar apenas por continuar, de navegar sem motivos. E não vou te dizer que, desta forma, acredito que chegaremos à areia porque estaria fazendo nascer mais uma esperança. Vou falar assim: fecha os olhos e sente o vento bater. Deixa ser.

p.s: Abreu diz que hoje é dia de não tentar compreender absolutamente nada, não lançar âncoras para o futuro.

Com carinho,
senhora M. Batata