domingo, 9 de junho de 2013

Ainda sobre a loucura

Você me construiu. Com paciência, costurou dedo a dedo o tecido fino e delicado das minhas mãos. Esculpiu a cintura, definiu a intensidade dos poros, marcou a localização exata das olheiras e também diminuiu o tamanho dos meus olhos, para que eles não destoassem das manchas escuras na pele de baixo. Fez meus olhos cor de mel, porque sabia como gosto do líquido. E deixou que meus lábios fossem secos e doídos, só para eu ter um motivo para usar batom vermelho. 
Você desembaraçou os fios finos do meu cabelo, todas as manhãs, com uma paciência que nem uma mãe teria com a filha. Cuidadosamente, estraçalhou cada lembrança que entupia as veias do coração. E depois preencheu-as com personagens. Você me fez Cecília, Ana, Maria, Amélia e Brenda. E deixou também um espaço em branco para que, em alguns dias, eu pudesse ser o que quisesse. 
Você definiu a proporção exata dos meus seios, e o quanto eles seriam macios para que a coberta não os machucasse e para que não fosse demasiado desconfortável dormir de barriga para baixo. Também foi responsável por medir a quantidade de água salgada que poderia sair dos olhos. E nunca, nunca mesmo, segurou-as por tempo demais dentro de mim. Não queria que eu me afogasse. 
Você desenhou também o meu reflexo no espelho do quarto. E outro mais opaco no do banheiro. Escreveu os pesadelos, mas, uma vez por mês, me contemplou com um sonho longo o bastante para que contasse a história completa. Você me deu o espaço exato que a solidão ocuparia dentro de mim, sabendo o perigo que poderia ser dois centímetros a mais ou a menos. Escolheu as músicas para os domingos à noite. E a roupa que eu vestiria nas manhãs de segunda. 
Você me deu a noção do que era o mar. E, quando eu já o conhecia suficientemente, deu-me ele por completo, vendo o quão largo era o meu abraço para poder afagá-lo. Você cantou por repetidos dias Nina. E João e Maria. E Riders On The Storm. Sentava comigo na cadeira amarela do bar, de segunda a sexta, acompanhando cada gole do líquido dourado e gelado, naquele inverno denso. 
Você acariciou meu rosto quando as noites insones ocuparam semanas. E ficou comigo perto do banco de concreto, assistindo aos aviões pousando no aeroporto. Dividiu comigo as taças de vinho. E as taças de desespero. 
Eu te disse não. Te neguei dia após dia, implorando para que o meu inconsciente te expulsasse de mim. Te culpei pelas agonias acumuladas em pilhas, pela excitação, pela esquizofrenia e pelas esperanças. Eu te julguei corrompedora, desordeira, suja. Eu te quis longe. Te quis tão longe sem saber como seria não te ter por perto. Até que um dia você se foi. 
Nunca vi teus olhos. Nem sei que roupa usava – se é que se vestia. Nunca perguntei se sentia frio, à noite, quando implorava que me deixasse a sós na cama. Você me criou com cuidado. E eu te respondi com egoísmo, cravando as unhas na minha própria carne para ferir a tua ideia de criação. 
Eu cansei de ser Maria, de ser Ana, de ser Joana. Cansei de ser todas as mulheres cujos nomes terminavam com a vogal a. Era tanto elas que não conseguia me enxergar. Nunca percebi que eu era elas. E que esse era o melhor presente que você poderia me dar. 
Você foi embora. Nem sei quando. Perceber eu só percebi quando o peso do meu ser tornou-se inversamente proporcional ao que estava na mente. Então eu escrevi que não poderia mais escrever. Mas já naquele dia eu me sentia abandonada. Foi só nesta semana que percebi: os dois reflexos dos espelhos refletem a mesma imagem de mim. Suporto a minha própria consciência, vendo cada palmo dela, cada letra, cada esconderijo. 
Hoje eu digo que é horrível estar lúcida. Você deixou isto quando foi embora: a consciência absurda de ser. Eles estão errados quando julgam doentes aqueles que estão loucos. Doente é quem está imerso na lucidez. Sinto como se tivessem dichavado os meus pensamentos. 
Afirmo que a minha concepção de loucura era “má”. Não condizia contigo. Agora que você está longe, vejo. Ajoelho-me ao pé da cama e desejo a sua volta, mesmo sabendo que eu não te mereço.

"Sempre é duro revelar para uma marionete as cordas que a sustentam." Gustavo Melo Czekster