E Maria escolheu o mar
Omar vai à Maria
E Maria vaia Omar
O mar enfeitiçou Maria
E Maria enfeitiçou Omar
Omar chorou por Maria
E Maria sorriu para o mar
Omar fugiu de Maria
E Maria correu para o mar
O mar engoliu Maria
E Maria matou Omar
Parece que foi ontem que ela me disse que ia fugir. Contou baixinho, pelo telefone, pouco antes de eu escovar os dentes e deitar. As malas estavam prontas, esperando no corredor da casa azul. O armário ficara vazio, exceto por alguns casacos grossos e duas calças xadrez de lã. Contou-me que calçara as galochas, pois diziam na televisão que choveria incessantemente pelos próximos 15 dias. Estava com o vestido vermelho que ele tanto gostava e com a bolsa de bolinhas. Deixara os quadros pendurados na parede e, antes de desligar o telefone sem ao menos deixar que eu desejasse boa viagem, pediu-me que cuidasse deles, que tirasse o pó, que não deixasse o primeiro ficar velho, o segundo com o vidro trincado e o terceiro sem moldura. Gostava tanto deles, ela disse seguido de um suspiro. Prometi passar lá uma vez por semana, o que logo se transformou em uma vez por mês e depois quase uma vez por ano.
Ela pensou que talvez fosse a ausência de música clássica, todos os ruídos da rua se infiltrando na mente esgotada, quase lúcida em excesso, quase sucumbindo. Quis tanto quebrar com a realidade que os olhos passaram a projetar, do outro lado da rua, a imagem embaçada da incoerência, a luta dos próprios sentimentos por um espaço, mesmo que mínimo, de paz. Quis tanto quebrar com a noite que cantou a música do avião e olhou para o céu na esperança de não ver vazio. E lá estava o avião, passando por um vácuo sem pontos reluzentes, sem uma pérola gigante, com tantas histórias que quase caía de lá na avenida caótica.
Viu o tapete de folhas na escada do trabalho. No dia anterior elas não estavam lá. Caíram assim, durante a noite, enquanto a lua ameaçava novamente se jogar do céu e todos ficaram frisando o quanto ela estava grande. Coitada. Grande e desfalecendo. E a menina caminhou em cima das folhas como se estivesse esperando aquilo por meses. E realmente estivera esperando. Ficou cinco minutos na escada, subindo cada um dos sete degraus com uma delicadeza inventada, deixando que o vermelho, que o amarelo e que o ruído das folhas esmagadas aquecessem seu peito, suas mãos, sua manhã de outono quase com vinte graus.Lembrou do banco no fundo do seu lugar preferido, dos aviões pousando, dos vinhos doces que haviam manchado a bolsa, das formigas que estavam preocupadas em guardar alimento para o inverno, das dores que estavam calmas, da calma que estava no peito, do peito que estava dormente, do sono que estava enchendo os olhos, mas não deixava escapar um fio líquido de saudade. Lembrou do quanto a vontade de deitar na grama, todos os dias das últimas duas semanas, havia trazido a insônia e os pesadelos. Todos eles em cobertas desarrumadas, em meias que escapam dos pés no meio da noite, em riscos brancos que dançam no teto escuro. Lembrou do quanto a vontade de deitar na grama, todos os dias das últimas duas semanas, deixava os olhos quase fechados, quase iluminados, os lábios sorrindo tortos para depois serem molhados pelo líquido salgado, tão pouco, que cai como se caísse de um conta-gotas.
E lá estava o outono, do lado de fora do trabalho, na escada, na calçada, na voz de Chico Buarque, nas notas abafadas das músicas instrumentais. E lá estava a lucidez, do lado de fora da mente, cantando em voz baixa toda a felicidade acumulada e distribuindo-a como se fosse bala de cereja. E lá estava o outono, as doses curtas de inconstância, a vontade de fugir para o mar no final de semana, as palavras paradas, os discuros guardados, a melacolia, tudo do lado de dentro.
"Acordava-se de súbito. Era tarde. A maré crescera a pouco e pouco. A água cingia o rochedo. Estava-se perdido." Victor Hugo