sábado, 26 de maio de 2012

O mar ia com Maria

Parece que foi ontem que ela me disse que ia fugir. Contou baixinho, pelo telefone, pouco antes de eu escovar os dentes e deitar. As malas estavam prontas, esperando no corredor da casa azul. O armário ficara vazio, exceto por alguns casacos grossos e duas calças xadrez de lã. Contou-me que calçara as galochas, pois diziam na televisão que choveria incessantemente pelos próximos 15 dias. Estava com o vestido vermelho que ele tanto gostava e com a bolsa de bolinhas. Deixara os quadros pendurados na parede e, antes de desligar o telefone sem ao menos deixar que eu desejasse boa viagem, pediu-me que cuidasse deles, que tirasse o pó, que não deixasse o primeiro ficar velho, o segundo com o vidro trincado e o terceiro sem moldura. Gostava tanto deles, ela disse seguido de um suspiro. Prometi passar lá uma vez por semana, o que logo se transformou em uma vez por mês e depois quase uma vez por ano.
Estando naquele quarto, ainda com os sentimentos, o lustre parecendo a lua, as cortinas amarradas no canto direito para que o silêncio fosse assassinado pelos barulhos de fora... estando lá eu entendia porque tanto ela desejava partir, porque realmente partira deixando para trás a sua coleção de palavras, contos inacabados e paredes brancas manchadas de poesia.
No final do terceiro ano, sem receber notícias suas e com o peito anestesiado pela falta de coerência, juntei meus poucos pertences espalhados pelo apartamento pequeno. Deixei um quadro um tanto desbotado na parede, não liguei para ninguém, calcei as botas de chuva, porque disseram na televisão que choveria incessantemente pelos próximos 15 dias. A porta ficou aberta, para que alguém pudesse se perder, o telefone fora do gancho, afinal eu realmente estaria ocupada, e pela última vez apertei o botão do elevador do prédio de 11 andares. O porteiro me deu boa noite e a noite me ignorou.
E ignorando todos os pressupostos de uma vida platônica, que se apresentavam em rimas, plantei o abismo nos olhos e reguei o rosto. A longo prazo, e eu sabia disso desde o início, a falta de água impediria que o abismo crescesse. E talvez sem que eu o houvesse programado, ele estabeleceu-se assim, em tamanho adequado, suscetível às flexibilidades da irritação, da paz e do vazio estocado.

"Muitas vezes os nevoeiros não deixam ao navio em marcha outro recurso que não seja por-se à capa ou ancorar. Há tantos naufrágios causados pelo nevoeiro como pelo vento." Victor Hugo